quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Intervenção no Lançamento do Livro «Homens e Medicamentos. História da Farmácia e da Terapêutica», 26 out. 2022, Auditório da Biblioteca Nacional de Portugal

O livro que hoje lançamos contém o essencial da matéria do curso de História da Farmácia, que ensino na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa desde a década de 1980.

 
Figura 1: Homens e Medicamentos.

Neste sentido, corresponde ao que foi o meu principal contributo para o ensino farmacêutico e é, para mim, particularmente importante que ele veja a luz do dia antes da minha reforma, que estará para muito breve, por razões que serão evidentes para quem hoje me vê nesta cadeira.
Ao mesmo tempo, este livro teve uma longa gestação, que acompanhou, de forma muito irregular, o meu percurso como docente da Faculdade de Farmácia.
Por todas estas razões, entendi que seria adequado falar-vos um pouco sobre alguns passos mais importantes deste percurso, que explicam as principais características deste livro.
Há alguns anos, no Brasil, quando esperava por um transporte, adquiri um opúsculo de anedotas étnicas - portugueses, chineses, mulatos, judeus, etc. Apesar do sentido racista e xenófobo da maior parte, algumas das anedotas eram mesmo muito interessantes.
Uma delas, em particular, dizia-me muito sobre a minha vida: Um português entra num elevador e diz que quer ir para o quarto andar. O ascensorista observa que o prédio só tem três andares, ao que o português responde: “Não faz mal, eu já me tinha enganado no número da porta”.
O número da porta em que entrei e muito do percurso que se seguiu, deveu-se ao jovem que se vê nesta fotografia [cf. Fig. 2], de punho erguido e megafone ao colo, à frente da Catedral de Lille, em 1977.


 
Figura 2: Lille, 1977.
Os seus pais tinham-no posto a estudar num colégio de jesuítas, frequentado por filhos das classes altas do país, onde ele fez todo o liceu, e donde - contrariamente às naturais expectativas dos pais e dos mestres - saiu, em 1971, um agnóstico, um determinado oposicionista ao regime de Marcelo Caetano e sem boas relações com as tais classes altas.
Pouco após a sua entrada na Universidade, ele acelerou esse percurso e rapidamente se tornou ateu e marxista. Por influência dum colega e amigo, o Artur Borges Nunes, o único que soube responder de forma satisfatória às questões que levantou, organizou-se num pequeno grupo de militantes clandestinos, que se consideravam os verdadeiros continuadores da 4.ª Internacional.
No essencial, do ponto de vista filosófico e dos objetivos, ele ainda hoje se mantém um materialista dialético e anseia por uma sociedade sem classes. A única - e grande - diferença é que agora tem muitas dúvidas e incertezas, sobre a forma de a atingir.
A escolha do curso de farmácia nunca foi o resultado de uma vocação, mas sim da conjunção de antigas pressões familiares e do convencimento - possivelmente errado - de que nunca seria realizador de cinema ou um bom fotógrafo.
De qualquer forma, no primeiro período em que a frequentou, a faculdade revelou-se muito mais uma escola de ativismo político-sindical e de descoberta do outro sexo, do que de aprendizagem de ciências farmacêuticas.
Em 1974, quando se dá a revolução do 25 de abril, ele decidiu que havia coisas mais interessantes e importantes para fazer que estudar farmácia. Foi então que suspendeu os estudos e enveredou pela dedicação exclusiva ao que Victor Serge chamava ser um revolucionário profissional.
Durante grande parte dos quatro anos seguintes, saiu de casa dos pais e a sua sobrevivência foi assegurada pelo Workers Revolutionary Party (WRP) da Grã-Bretanha, respondendo diretamente perante Gerry Healy (1913-1989). Gerry viria a ser expulso do WRP em 1985, acusado de assédio sexual a jovens camaradas, mas isso aconteceu vários anos depois de o jovem da fotografia abandonar o partido. Nesta época Gerry Healy era o não questionado e temido secretário-geral do partido e trazia consigo a autoridade e o prestígio de quatro décadas de militância política.
 
Figura 3: 1972-[1974-1978]

O jovem do punho erguido teve a sorte de cair num movimento que valorizava e cultivava a dimensão teórica do marxismo, contrariamente à corrente dominante no movimento operário em Portugal, que tendia a desconfiar da teoria, como um desvio intelectual, anti-operário e pequeno-burguês. O seu tempo no WRP incluiu, entre outras coisas, passagens pelo denominado «College of Marxist Education», nos Midlands, assim como pela sede do partido e pela redação do diário Newsline, onde, entre outras coisas, adquiriu um grande respeito e curiosidade pelas possibilidades de aplicação da tecnologia.
Depois de 1978, ano em que decidiu que a vida de revolucionário profissional - sublinhando o conflito e não apenas a unidade entre contrários - não era a adequada para o seu feitio e maneira de ser, tinha adquirido e assimilado suficientes interesses histórico-sociais e conhecimentos sobre o materialismo histórico e a filosofia marxista, para poder ter a veleidade de se dedicar à história. Se não fosse essa bagagem não sei qual o caminho pelo qual teria seguido a viagem da vida, mas certamente não seria aquele pelo qual efetivamente seguiu.
Isso aconteceu depois de voltar a estudar na Faculdade de Farmácia para concluir a licenciatura, depois de ensinar no ensino secundário e após uma curta passagem de três anos pelo Laboratório de Química Orgânica, sob a direção do Prof. José do Nascimento Júnior, uma figura tão interessante, cativante e generosa como caótica, que apenas esboçou pequenas objeções à sua infidelidade e mudança de interesses académicos.

 

Figura 4: 1982-1987.

Em fevereiro de 1987 - quando em Portugal ainda não existiam mestrados em história da ciência - realizou Provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, como resultado do seu primeiro trabalho de fôlego em história da farmácia, que seria publicado um quarto de século depois pela Caleidoscópio, com o título «A Água de Inglaterra: Paludismo e Terapêutica em Portugal no século XVIII» (2012).
O doutoramento foi realizado em 1991, com a tese «Inovação Técnica e Sociedade na Farmácia da Lisboa Setecentista», publicada em 2007 pela Gulbenkian e pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, com o título «Droguistas, boticários e segredistas. Ciência e Sociedade na Produção de Medicamentos na Lisboa de Setecentos».
 

 
Figura 5: 1991.

Seguiu-se um pós-doutoramento em Londres, no Wellcome Institute for the History of Medicine em 1994-95.
 

 
Figura 6: 1994-1995.

 

 
Figura 7: c. 1985.

Anos depois teve a honra de coordenar as Comemorações do Centenário da Universidade de Lisboa, enquanto Pró-Reitor na Equipa Reitoral de António Sampaio da Nóvoa (2006-2009 e 2010-2011) e de dirigir o Museu Nacional de História Natural e da Ciência (2012-2019).
 

 
Figura 8: 2006-2009 e 2010-2011

Principalmente nestas últimas funções teve a oportunidade de aplicar - em termos de organização e mobilização de massas - muito do que aprendera nos anos de revolucionário profissional. E foi com grande prazer que retribuiu essa aprendizagem com a organização de uma exposição sobre «A Revolução Russa e a Cultura Científica em Portugal no Século XX», no momento do centenário da Revolução de Outubro.

 
Figura 9: 2012-2019.

A saga que levou a este livro foi iniciada no ano letivo de 1987/88, quando comecei a ser o responsável pela regência da disciplina de História da Farmácia, na Faculdade de Farmácia..
A orientação programática dada a este ensino procurou assentar numa visão não limitada à história da profissão farmacêutica, que partisse da história mais geral do pensamento científico e médico-farmacêutico e abordasse várias dimensões, como a a filosófica, a religiosa, a social, a económica e a política.
Da mesma forma, procurámos que o curso não se limitasse a uma descrição de ideias e factos e procurasse problematizar a interação da história dos medicamentos com as diferentes dimensões das sociedades humanas.
Esta orientação, que não encontrámos na maior parte das obras disponíveis - que eram então muito escassas nas nossas bibliotecas, aconselhou desde muito cedo à redação de um livro de texto próprio.
Infelizmente, embora fossem produzidos alguns materiais e partes deste texto tivessem várias incarnações, algumas mesmo com ampla difusão na Internet - por exemplo, no Brasil, com o título «A Farmácia e a História», este livro nunca chegou a ser concluído. Apenas os capítulo sobre a farmácia em Portugal e sobre a farmácia no Renascimento foram objeto de publicação.
A conclusão do livro apenas teve lugar entre 2019 e 2022, depois de regressar dos Museus da Universidade de Lisboa para a Faculdade de Farmácia. Tal só foi possível com a sabática de reinserção que a Faculdade me concedeu no ano letivo de 2019-2020. O início da pandemia e os posteriores problemas de mobilidade criaram alguma dificuldade de acesso aos meus livros, a maior parte dos quais ainda se encontram num segundo andar - sem elevador - do Instituto Rocha Cabral, onde atualmente não consigo ir, mas creio que essa dificuldade acabou por ser ultrapassada no essencial e salvou este livro de alguma tentação de erudição, acabando por viver muito da memória das aulas, baseada na organização mais coloquial dada aos seus sumários e diapositivos.
Não vos vou maçar mais com considerações sobre o livro.
Quero apenas dizer-vos que continuo muito contente por me ter enganado no número da porta que me trouxe aqui, até à edição e lançamento de «Homens e Medicamentos» e até ao pé de vocês.
Obrigado.

José Pedro Sousa Dias


domingo, 4 de setembro de 2022

Portal Lezíria do Tejo tornado público

O portal Lezíria do Tejo é agora tornado público no novo endereço www.leziriadotejo.eu.

Lezíria do Tejo é o caderno de campo para um projeto sobre o Património Natural e Cultural e a História do Ribatejo e da Lezíria do Tejo, a planície aluvial do Tejo, em Portugal.

Este trabalho é visto eventualmente como parte de uma futura Rota Cultural das planícies de cheia da Europa (ver a página do programa Rotas Culturais do Conselho da Europa).

Nas suas próprias palavras: “Lançados pelo Conselho da Europa em 1987, os Percursos Culturais demonstram, através de uma viagem no espaço e no tempo, como o património e culturas dos diferentes países da Europa contribui para um património cultural vivo e partilhado. ”

Para uma visão geral das planícies aluviais europeias, consulte o visualizador de estatísticas de planícies aluviais da Rede Europeia de Informação e Observação do Ambiente (Eionet).

Grande parte deste projeto tem estado a ser realizado como um trabalho de lazer e tempos livres, envolvendo a colaboração de Diana Carvalho e José Pedro Sousa Dias. É à Diana que devemos a crescente sensibilização para a região do Ribatejo, onde passámos a maior parte do tempo durante a pandemia de Covid-19. O rio Tejo e as suas planícies foram um refúgio e santuário caloroso e acolhedor durante este período.

O projeto visa a publicação deste portal e, eventualmente, de um guia impresso.

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Homens e Medicamentos. História da Farmácia e da Terapêutica

 
Este livro contém o Curso de História da Farmácia e da Terapêutica que ensino na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa desde a década de 1980.
Estará à venda, online a partir do próximo dia 15 de agosto, e nas livrarias a partir do mês de setembro. O lançamento terá lugar provavelmente em setembro.



segunda-feira, 16 de maio de 2022

Sita - A vida e o Tempo de Sita Valles

Vi hoje o documentário "Sita - A vida e o Tempo de Sita Valles", de Margarida Cardoso, em exibição em Lisboa, e que pode ser adquirido igualmente em DVD (pelo menos no Cinema Ideal)

Os factos narrados não são, na maioria, novos. Mas vê-los ditos na primeira pessoa, por muitos dos intervenientes que os viveram de perto, foi um enorme murro no estômago.

Para além do que se abateu sobre a Sita, o seu marido e os restantes protagonistas principais, fica uma enorme perplexidade sobre como um Estado, um Partido e um Presidente assassinaram, de forma sumária e prolongada no tempo, dezenas de milhares de cidadãos do seu jovem país, para assegurarem que o lugar deixado vago pelos anteriores colonos podia por eles ser ocupado, sem terem que dividir as suas riquezas pela grande massa da população. 

Fizeram-no com o apoio, a cumplicidade ou o silêncio de atores do bloco de Leste e do chamado mundo ocidental.

Fizeram-no com o apoio e a cumplicidade de Cuba e da URSS, o que não estranha se atendermos a que o que se passou em Angola em 1977-78 foi muito semelhante ao que os dirigentes soviéticos e do Comintern fizeram a Andreu Nin e ao Partido Obrero de Unificación Marxista durante a guerra civil espanhola. 

Mas também o fizeram com o silêncio cúmplice do Governo e do Estado português, por motivos de convicção política ou para não pôr em risco a partilha de algumas migalhas das riquezas angolanas.

A todos estes se juntou a cumplicidade de Álvaro Cunhal e do Partido Comunista Português, por motivos e de uma forma que não deixa de apresentar contornos semelhantes aos que levaram este partido a tomar a sua conhecida posição face à atual invasão russa da Ucrânia.

Até agora, só o atual Presidente de Angola, João Lourenço, tomou a iniciativa de romper o véu do silêncio. Seria o momento de outros o fazerem.

 


quinta-feira, 7 de abril de 2022

O Partido Comunista Português e a invasão da Ucrânia

O PCP continua alegremente na senda do apoio objetivo a Vladimir Putin, ao votar contra o convite a V. Zelenski para falar no parlamento português e na argumentação com que alertou para “manipulação” e pede investigação rigorosa sobre as mortes de civis na cidade de Bucha.

É verdade que a retórica do PCP se coloca numa hipotética neutralidade entre ambos os lados do conflito, mas esquecer que um dos países (sem dúvida o mais forte) é o invasor e o outro (o mais fraco) é o invadido e pô-los em pé de igualdade só porque os EUA, a NATO e a UE dão a este último um apoio parcial e limitado, é claramente um sofisma.

A continuada insistência nas teses sobre os nazis ucranianos e sobre a falta de provas acerca dos crimes de guerra russos, quando é evidente a falta de apoio aos primeiros por parte dos eleitores ucranianos e quando a deliberada destruição de alvos civis por parte dos russos se encontra mais que demonstrada, tanto na Ucrânia como na Síria (que curiosamente não é diretamente mencionada no comunicado de imprensa do PCP), é uma técnica antiga de distorção deliberada dos factos.

Ao defender estas posições, o PCP mantém-se próximo do Partido Comunista da Federação Russa, que apoia a intervenção militar russa no Donbass: 

"A Rússia está-se finalmente a afastar da idolatria perniciosa do Ocidente…. É hora de mostrar o nosso caráter no Donbass. Estamos rodeados por uma cadeia de Estados hostis. É impossível recuar mais. O Ocidente deve sentir a determinação da Rússia em defender a si mesmo e seus amigos. (...)

Estamos prontos para apoiar as medidas decisivas do governo para proteger a segurança da Rússia e dos nossos concidadãos nas Repúblicas Populares da região de Donbass." [Artigo de opinião de Gennady Zyuganov, atual líder do PC da FR de 4 de fevereiro de 2022 [Peoples World].

A 5 de abril, o mesmo G. Zyuganov defendeu na reunião plenária da Duma que a Ucrânia "deve ser libertada do nazismo e dos banderistas", apelidando de histórica a decisão de Putin de iniciar a invasão:

“Todos entendem que a Ucrânia deve ser libertada do nazismo e dos banderistas. Todos estão cientes de que a decisão do Presidente da Federação Russa de iniciar a operação visando a desmilitarização e desnazificação da Ucrânia é histórica. Mas todos entendem que se pararmos e os nazistas ainda detiverem o poder, a situação será ainda pior” [Página da Duma].

Ao recusar de facto o direito dos ucranianos se armarem e defenderem da agressão, o PCP afasta-se das teses de Lenine sobre o respeito pelas nacionalidades e aproxima-se da visão imperial de Estaline, posições abertamente partilhadas por Putin [ver Lipman, Masha. 2014. "Putin Disses Lenin". The New Yorker, 3 de Setembro de 2014. https://www.newyorker.com/news/news-desk/putin-disses-lenin].

No seguimento das Teses sobre a Questão Nacional, que escrevera em 1913, Lenine deixou bem claro em 1917 que:

"nenhum democrata pode negar o direito da Ucrânia de se separar livremente da Rússia. Somente o reconhecimento irrestrito desse direito permite defender uma união livre dos ucranianos e dos russos, uma associação voluntária dos dois povos em um Estado. Só o reconhecimento incondicional deste direito pode realmente romper completa e irrevogavelmente com o maldito passado czarista, quando tudo foi feito para provocar um distanciamento mútuo dos dois povos tão próximos um do outro em língua, território, caráter e história. O maldito tsarismo fez dos russos carrascos do povo ucraniano e fomentou neles o ódio por aqueles que até proibiam as crianças ucranianas de falar e estudar em sua língua natal." [Publicado pela primeira vez no Pravda nº 82, 28 (15) de junho de 1917. Publicado de acordo com o texto do Pravda. Marxists Internet Archive.]

Já há muito tempo que o PCP parece ter sacrificado uma visão crítica da realidade internacional em favor de uma concentração de esforços na realidade nacional. Mas se tal podia fazer algum sentido quando ainda existia a ditadura em Portugal e a Rússia era a URSS, a presente colagem ao PC da Federação Russa surge como um mero reflexo atávico e irracional.

Tudo indica, contrariamente ao vaticinado por vários comentadores, que o PCP não vai morrer soterrado pela pirâmide etária. Por este caminho vai-se tristemente afogar nas águas paradas da estupidez. E é pena. O saudável equilíbrio de forças da democracia ficará certamente a perder.

quinta-feira, 31 de março de 2022

A denominação de uma disciplina: Ecologia

O termo ecologia (do grego oikos, "casa" e -logia, "estudo de") foi introduzido por Ernst Haeckel (1834-1919) no seu livro Natürliche Schöpfungsgeschichte [História da Criação Natural] (1868), traduzido para inglês em 1876 sob a supervisão do zoólogo E. Ray Lankester (1847-1929), com o título The History of Creation.

Nas palavras de Haeckel, a ecologia assenta numa premissa claramente materialista, alheia a quaisquer intenções do Criador:  

"A ecologia dos organismos, o conhecimento da soma das relações dos organismos com o mundo exterior circundante, com as condições orgânicas e inorgânicas de existência; a chamada "economia da natureza", as correlações entre todos os organismos que vivem juntos numa mesma localidade, sua adaptação ao meio, sua modificação na luta pela existência, especialmente as circunstâncias dos parasitismos, etc. São apenas esses fenómenos na “economia da natureza” que os não-científicos, numa consideração superficial, costumam considerar como arranjos sábios de um Criador agindo para um propósito definido, mas que, num exame mais atento, mostram ser os resultados necessários de causas mecânicas." (Haeckel 1876, vol2, p. 354).

Não é por acaso que a revisão do livro é realizado por Ray Lankester, admirador de Charles Darwin (1809-1882) e amigo de Karl Marx (1818-1883), autores que partilhavam dessa recusa duma visão teleológica do mundo natural. Lankester é a única figura que se sabe ter estado no funeral de ambos. Por volta de 1879-80, ele tornara-se amigo próximo e visita assídua de Karl Marx e da sua filha Eleanor (1855-1898). Segundo Foster, "Marx sem dúvida achou atraente o materialismo e o radicalismo completos de Lankester" (Foster 2020, p. 37), sendo possível encontrar nas suas obras e correspondência fortes indícios das trocas de ideias entre ambos.

Ray Lankester foi um influente autor e professor de zoologia geral na viragem do século XIX para o século XX, tendo realizado importantes contribuições para a anatomia comparada, a embriologia, a parasitologia e a antropologia. Foi professor nas Universidades de Londres (1874-90) e de Oxford (1890-1898) e na Royal Institution, em Londres (1898-1900) e diretor do Natural History Museum, de Londres (1898-1907). 

Lankester, ele próprio um pioneiro da ecologia, preferiu usar o termo "bionomics [bionomia]" (do grego bio, "vida" e -nomos, "lei") em vez de "ecologics [ecologia]", o que fez no artigo "The history and scope of zoology", primeiro publicado na nona edição  da Encyclopædia britannica (1888). Neste artigo, reeditado na coletânea  The advancement of science. Occasional essays & addresses (1890), Lankester considerava que se podia dizer que "Darwin fundou a ciência da bionomia" (Lankester 1890, p. 367).

Segundo Lankester, que fora um dos principais fundadores da Marine Biological Association em 1884 e seu presidente entre 1890 e 1929, 

"A fundação de laboratórios biológicos marinhos sob o controle de zoólogos científicos oferece uma perspetiva de verdadeira observação e experiência bionómica em escala aumentada num futuro próximo, e onde tais laboratórios fossem fundados nas nossas universidades e dotados dos aparelhos necessários para manter animais terrestres e de água doce, assim como as formas marinhas, vivas e observadas em condições o mais próximas possíveis das da natureza, teria sido dado um passo no sentido de fazer avançar o estudo da Bionomia que não pode ser adiado." (Lankester 1890, pp. 369-70).   

O termo bionomia só foi substituído por ecologia, como o preferido pelos biólogos, no início do século XX.

Nota:

J. B. Foster dedica todo o primeiro capítulo, "Ecological Materialism", de The Return of Nature (pp. 24-72) a E. Ray Lankester. Foster não se limita a abordar o seu pensamento ecológico, traçando igualmente o perfil biográfico, tanto de Ray como de seu pai, o médico Edwin Lankester (1814-1874), e discutindo o seu pensamento relativamente a questões como a degeneração, a "questão feminina", ao darwinismo social e à eugenia. Aborda igualmente a sua relação com Marx e aspetos do seu posicionamento sócio-político.

Bibliografia

Britannica, The Editors of Encyclopaedia. "Sir Edwin Ray Lankester". Encyclopedia Britannica, https://www.britannica.com/biography/Edwin-Ray-Lankester. Ac. 29 mar 2022.
Foster, John Bellamy. 2020. The Return of Nature: Socialism and Ecology. Monthly Review Press.
Haeckel, Ernst. 1876. The history of creation, or, The development of the earth and its inhabitants by the action of natural causes : a popular exposition of the doctrine of evolution in general, and of that of Darwin, Goethe and Lamarck in particular / from the German of Ernst Haeckel ; the translation revised by E. Ray Lankester. 2 vols vols. London: H.S. King & Co. https://wellcomecollection.org/works/rpm9wvq7.
Lankester, E. Ray. 1890. The advancement of science. Occasional essays & addresses. London: Macmillan. https://www.biodiversitylibrary.org/item/74510.
 
 
 

segunda-feira, 21 de março de 2022

Pensamento ecológico e socialista: dois livros de John Bellamy Foster

John Bellamy Foster
Existe uma tradição ecológica socialista e materialista, com raiz no pensamento de Karl Marx? John Bellamy Foster (N. 1953) tem publicado de forma consistente, tanto individualmente como em colaboração com outros autores, a demonstrar que sim. Foster, professor de sociologia na Universidade de Oregon e editor da Monthly Review, é o autor, entre outros livros que abordam a temática ecológica, de Marx's Ecology: Materialism and Nature (2000) e The Return of Nature: Socialism and Ecology (2020), duas obras fundamentais para se entender o pensamento de Karl Marx e de outros autores no campo do socialismo sobre a natureza e a ecologia.

Marx’s Ecology: Materialism and Nature

Em Marx’s Ecology: Materialism and Nature, Foster   contesta a ideia muito frequente que Marx se preocupava apenas com o crescimento industrial e o desenvolvimento das forças produtivas. No prefácio, Foster descreve o seu próprio percurso intelectual e as dificuldades que teve para compreender inteiramente a importância do pensamento ecológico de Marx: "O meu caminho para o materialismo ecológico foi bloqueado pelo marxismo que aprendi ao longo dos anos. (...) Parecia haver pouco espaço em tal síntese, no entanto, para uma abordagem marxista das questões da natureza e da ciência natural-física" (p. vii). No livro, ele examina vários escritos de Marx sobre agricultura capitalista e ecologia do solo, naturalismo filosófico e teoria da evolução, apresentando uma nova compreensão do materialismo ecológico, expresso no seu conceito central de fratura metabólica na relação humana com a natureza. Ele mostra que Marx, além de crítico da sociedade capitalista, também estava profundamente preocupado com essa mudança da relação homem-natureza. Marx’s Ecology descreve uma história intelectual e social, abrangendo pensadores como Epicuro (341 a.C.-270 a.C.), Charles Darwin (1809-1882), William Paley (1743-1805), Thomas Malthus (1766-1834), Ludwig Feuerbach (1804-1872) e Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865). Ao reconstruir uma conceção materialista da natureza e da sociedade, Marx’s Ecology contrapõe à visão idealista predominante no movimento verde moderno um método de análise que oferece soluções mais sustentáveis ​​para a crise ecológica. O livro termina com as mortes de Darwin (1882) e Marx (1883). Apenas no Epílogo é que Foster avança cronologicamente, abordando a receção do pensamento ecológico de Marx em vários autores do século XX.

The Return of Nature: Socialism and Ecology

Vinte anos depois, com
The Return of Nature: Socialism and Ecology, Foster continua e desenvolve a narrativa iniciada no Epílogo de Marx’s Ecology, descobrindo uma longa linhagem de autores que procuraram unir questões de justiça social e sustentabilidade ambiental. As 672 páginas de The Return of Nature contém uma detalhada epopeia, que começa nos finais do século XIX e segue até ao surgimento da era ecológica, nas décadas de 1960 e 1970. Ele mostra como vários pensadores socialistas e cientistas materialistas influenciados por Marx, primeiro na Grã-Bretanha, depois nos Estados Unidos, como Ray Lankester (1847-1929), William Morris (1834-1896), Frederick  Engels (1820-1895), Arthur George Tansley (1871-1955), H(erbert) G(eorge) Wells (1866-1946), Lancelot Hogben (1895-1975), John Desmond Bernal (1901-1971), Joseph Needham (1900-1995), John Burdon Sanderson Haldane (1892-1964), Hyman Levy (1889–1975), Christopher Caudwell (1907-1937), Rachel Carson (1907-1964) e Stephen Jay Gould (1941-2002), procuraram desenvolver um naturalismo dialético, enraizado numa crítica do capitalismo, oferecendo uma reinterpretação detalhada e fascinante das origens radicais e socialistas da ecologia. Nas palavras do autor, "Os principais pensadores socialistas (e social-democratas) que constituem o foco deste livro foram todos politicamente e socialmente ativos no desenvolvimento de uma visão crítico-materialista enraizada na ecologia e na dialética que se estendeu à ciência e/ou arte" (p. 21). O livro dedica uma larga atenção à vida e ao pensamento, não apenas ecológico mas também político e social de muitos desses autores, constituindo uma fonte de informação que vai muito além do que esperaríamos do seu título.

domingo, 13 de março de 2022

Efeitos da guerra na Ucrânia na crise climática

Como referiu o The New York Times, o presidente Biden "mal mencionou as suas metas climáticas no discurso do Estado da União, apesar das promessas de tornar o clima uma questão que impulsiona sua presidência". Contudo, a invasão russa da Ucrânia, a que o discurso dedicou a maior atenção, já está a ter um efeito importantíssimo sobre o clima.

O aumento brutal do preço da energia, dos cereais e outras matérias primas está já a empurrar a inflação e as taxas de juro para novos patamares, anunciando um possível cenário recessivo no médio prazo, que reduzirá certamente as verbas disponíveis internacionalmente para as medidas de combate às alterações climática.

Segundo o Fundo Monetário Internacional:

"Os preços de energia e mercadorias – incluindo o trigo e outros cereais – subiram, aumentando as pressões inflacionárias de interrupções na cadeia de abastecimento e a recuperação da pandemia de Covid-19. (...) Se o conflito aumentar, os danos económicos serão ainda mais devastadores. As sanções à Rússia também terão um impacto substancial na economia global e nos mercados financeiros, com repercussões significativas para outros países."

Para uma visão  geral do  impacto dos conflitos militares para as alterações climáticas, ver o texto "How does war contribute to climate change?" publicado no site Conflict and Environment Observatory a 14 de junho de 2021. O mesmo site publica informação atualizada sobre o impacto ambiental do conflito.

A indiscriminada e massiva destruição de zonas habitacionais e infraestruturas civis ucranianas, incluindo centrais elétricas, por parte do exército russo, acarretará, para além do custo de vidas inocentes, um peso ainda incalculável na pegada de carbono europeia. O necessário investimento para a sua reconstrução consumirá grande parte das verbas de apoio disponíveis. 

Igualmente segundo o Fundo Monetário Internacional:
"Na Ucrânia, além dos custo humanos, os danos económicos já são substanciais. Portos marítimos e aeroportos estão fechados e foram danificados, e muitas estradas e pontes foram danificadas ou destruídas. Embora seja muito difícil avaliar com precisão as necessidades de financiamento nesta fase, já está claro que a Ucrânia enfrentará custos significativos de recuperação e reconstrução."

O ataque e ocupação de centrais nucleares ucranianas por parte do exército russo, como a Central Nuclear de Zaporizhzhia, a maior da Europa e com seis reatores, além de abrir a porta a acidentes graves, levanta interrogações sobre a sua possível utilização como arma económica, no sentido de promover o aumento da já grande dependência europeia do petróleo e gás russos. 

Vários autores chamam a atenção para a dependência europeia dos combustíveis fósseis russos, que recebe cerca de 70% das exportações de gás e metade das exportações de petróleo desse país. A Europa depende da Rússia para suprir 40% destas necessidades energéticas. 

A vontade da Alemanha e de outros países de reduzir a dependência das importação russa, poderá levar a um incremento sustentado do investimento na eficiência energética e nas energias renováveis, o que terá um efeito positivo nas políticas ambientais. Logo no início da agressão, a Alemanha suspendeu o projeto da já concluída ligação direta de gás entre a Alemanha e a Rússia, o gasoduto Nord Stream 2, parando o seu processo de certificação.

Contudo, no curto e médio prazo, a redução da dependência do gás e petróleo russos pode ser conseguido através do recurso a outros combustíveis fósseis. Por exemplo, usando mais carvão para produção de energia. Esta é a opinião do diretor do Instituto Potsdam para Pesquisa de Impacto Climático (PIK), Ottmar Edenhofer. No curto e médio prazo, o governo alemão também planeia estabelecer reservas estratégicas de carvão e gás e construir terminais de gás natural liquefeito (GNL) para diversificar a oferta.

Segundo Steve Cohen, no State Planet, não será inteiramente claro o efeito da guerra na política climática dos EUA, com a possibilidade de o Supremo Tribunal destruir a Lei do Ar Limpo e contradizer uma decisão anterior, da era George W. Bush, que definiu os gases de efeito estufa como um poluente perigoso, que requer regulamentação da U.S. Environmental Protection Agency

Olivia Lazard, no Carnegie Europe, entrevistou François Gefmenne, um dos principais autores do último relatório do Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC). Entrevistador e entrevistado levantam questões relativas aos objetivos e consequências da invasão nas cadeias de abastecimento de minerais e outras mercadorias essenciais para as estratégias de descarbonização.

O anunciado aumento do orçamento militar por parte da Alemanha, que vai possivelmente ter lugar num contexto de depressão económica e arrastar outros países europeus para semelhantes investimentos, irá competir com outras medidas, incluindo as de combate às alterações climáticas. 

sábado, 12 de março de 2022

Duas citações sobre a Ucrânia

Vladimir Ilyich Ulyanov

"E nenhum democrata pode negar o direito da Ucrânia de se separar livremente da Rússia. Somente o reconhecimento irrestrito desse direito permite defender uma união livre dos ucranianos e dos russos, uma associação voluntária dos dois povos em um Estado. Só o reconhecimento incondicional deste direito pode realmente romper completa e irrevogavelmente com o maldito passado czarista, quando tudo foi feito para provocar um distanciamento mútuo dos dois povos tão próximos um do outro em língua, território, caráter e história. O maldito tsarismo fez dos russos carrascos do povo ucraniano e fomentou neles o ódio por aqueles que até proibiam as crianças ucranianas de falar e estudar em sua língua natal."

Publicado pela primeira vez no Pravda nº 82, 28 (15) de junho de 1917. Publicado de acordo com o texto do Pravda. Marxists Internet Archive.

Gennady Zyuganov

"A Rússia está-se finalmente a afastar da idolatria perniciosa do Ocidente…. É hora de mostrar o nosso caráter no Donbass. Estamos rodeados por uma cadeia de Estados hostis. É impossível recuar mais. O Ocidente deve sentir a determinação da Rússia em defender a si mesmo e seus amigos.

(...)

Estamos prontos para apoiar as medidas decisivas do governo para proteger a segurança da Rússia e dos nossos concidadãos nas Repúblicas Populares da região de Donbass."

Artigo de opinião do atual líder do Partido Comunista da Federação Russa de 4 de fevereiro de 2022. Peoples World.

segunda-feira, 7 de março de 2022

O blogue Viridarium está a ser reativado

E. Haeckel, Kunstformen der Natur (1904)

Viridarium foi mantido entre 2005 e 2011, principalmente como um blogue dedicado à história das ciências, contando com a colaboração de vários autores (Para referência, manteremos acessível o arquivo das quase duas centenas de mensagens publicadas durante esse período). A nomeação do seu administrador como diretor do Museu Nacional de História Natural e da Ciência em 2012, acabou por levar à sua total inatividade, situação que se manteve até aos dias de hoje.

Dez anos depois, é nossa intenção reativá-lo, com caraterísticas e conteúdo diferentes, resultantes de alterações várias de natureza pessoal e profissional e de outros interesses intelectuais. Por motivos de saúde, este ano letivo de 2021/22 será muito certamente o último em que lecionarei na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, ficando com mais tempo livre para me dedicar a outras atividades. Poderei abordar e revisitar temas e questões que foram sendo negligenciados ou esquecidos ao longo dos anos. Por outro lado, o afastamento da vida universitária, o facto de já não estar a viver em Lisboa e de ter atualmente dificuldades de mobilidade, tornam mais interessante a utilização de um meio de comunicação como um blogue.

Antes de mais, Viridarium será mantido como um blogue individual e será dedicado ao papel da história e do pensamento na compreensão da relação entre o homem e a natureza. Pretendemos que Viridarium continue a desenvolver temas académicos e disciplinares, nomeadamente no âmbito da história, mas também que tenha um maior caráter cívico, abordando questões político-filosóficas e civilizacionais, nomeadamente relacionadas com a cultura pública e os museus, a ecologia, o socialismo e o marxismo.