MEMÓRIA DE JOÃO (de Deus) CÉSAR MOMTEIRO
Não me lembro bem quando foi que conheci João César, se é que fomos alguma vez apresentados. Talvez tenha sido no tempo das minhas aventuras de cinéfilo das vidinhas (qual delas?), no CCC – leia-se Centro de Cultura Cinematográfica, da JUC –, nos anos 60; ou no contemporâneo cenáculo que discutia filmes e escrevia artigos e críticas aos sábados, na página Pelo Mundo do Cinema das Novidades coordenada por José Vieira Marques; ou em O Tempo e o Modo onde ambos escrevemos. Porque, ainda em 1972, João César declarava-se cineasta católico (com Manoel de Oliveira e Paulo Rocha), e talvez soubesse de mim. Eu, por mim, sabia dele, tinha lido a sua espantosa crítica a O Passado e o Presente e, mais tarde, visto filmes seus (médias metragens, Veredas, Silvestre), com o estremecimento que provoca uma epifania.
Certo dia (já os anos 80 iam avançados), aconteceu vermo-nos frente a frente, na coxia do São Carlos (ou seria do Tivoli?), ele na ponta de baixo, eu na de cima. Íamos um para o outro, lentamente, e não me era certo se nos conhecíamos, ele aos ziguezagues (como de costume) e eu sem saber se, numa última, ágil finta dele – sou um bocado como o Garrincha: utilizo sempre a mesma finta –, nos cruzaríamos, e cada um ia à vidinha. Afinal demos um caloroso aperto de mão e ficámos amigos para sempre; mas sempre cerimoniosa ou cerimonialmente, como manda a boa educação. Afinidades electivas: a obsessão do sagrado e o gosto do profano, o amor ao cinema, à música, às letras e outras artes, o gosto da cavaqueira e o desgosto por esta piolheira...
Passou João César a convidar-me, pontualmente, para as ante-estreias dos seus filmes. Era uma festa, não só (e sobretudo) pelos ditos, mas também porque lá se encontravam amigos, entre eles Sophia de Mello Breyner (cujo documentário fora a estreia dele, em 1969) e Margarida Gil (com quem era então casado), companhia ideal para a conversa enquanto a função não começava, que havia sempre atrasos.
Em contrapartida, quando sucediam ameaças à nossa frágil cultura, lá ia eu ter com Margarida e João César, a pedir-lhes solidariedade e a sempre pronta assinatura. Lembro-me de uma vez, quando passou pela cabeça de um governante transformar o Teatro de São Carlos em “sala de visitas de Lisboa”. Fui a sua casa, perto da Avenida de Roma e, enquanto falávamos antes da consumação do abaixo-assinado, o cão preto deles – parecia o cão raivoso no fim dos Olvidados de Buñuel – estava tomado por tais cios que não parava de tentar copular comigo: o que João César olhava complacentemente enquanto Margarida tentava livrar-me da ignomínia.
Quando ele se mudou para as faldas do Bairro Alto, os nossos encontros tornaram-se mais frequentes, mas o lugar e o cão eram outros. O cão era o Liszt, não preto mas “golden”, que eu passeava todas as manhãs no Príncipe Real. João César – que clamara: O meu reino por um banco de jardim, e achava a Oceanografia del Tedi, de Eugénio d’Ors, no original catalão, a companhia ideal para o Jardim Botânico do Príncipe Real – ia aí comprar jornais, praticar abusos tabágicos, flanar e olhar as belezas da natureza, como o futuro João Vuvu, num vai e vem.
No meio daquele esplendor vegetal, via-se, ao tempo, a menina Alexandra, jovem jardineira varrendo os lixos, sachando as terras e cuidando das plantas. Tinha um mover de olhos brando e piedoso, um riso brando e honesto, um doce e humilde gesto (o soneto todo, duas vezes recitado na Comédia de Deus), a pele trigueira, o corpo roliço e um tanto rústico, como João de Deus gostava. Ao vê-la podia pensar-se que João César também a catrapiscasse para um casting: como um rato, menina de bom recato. Mas ela não devia ter maneiras para rodar à maneira dele. Queria ser arquitecta (mas os pais eram pobres), queria casar, montar casa (numa montagem a prestações)... De súbito sumiu-se, sem ser tida nem achada: terá arranjado emprego debaixo de telha, quiçá num centro comercial (paraíso, hoje, das finte giardiniere de ontem): que lhe faça bom proveito!
Beijinhos
Sidónio de Freitas Branco Paes