Faço um apelo ao país
Tenho 47 anos, e portanto sou do tempo em que se descobria imensa coisa na escola e em casa, e no próprio acto de viver. Quase tudo o que sei, aprendi entre a primeira e a quarta classe. Não há mais nenhum factor pessoal que interesse, a não ser que, nos primeiros tempos, integrei o juri do programa A Bela e o Mestre. E, com isso, descobri uma situação generalizada que me surpreendeu e assustou. Agora que o programa acabou, reflectir sobre o que aprendemos com ele é um acto de utilidade pública. Estamos perante um assunto que eu considero dolorosamente sério, e carente de reflexão nacional igualmente séria. Se possível, com caracter de urgência. Para chefes máximos do país, ministros, políticos, professores, cidadãos, pais – todos os que desempenham no quotidiano a função cada vez mais complexa de educadores dos portugueses.
Aqueles rapazes e raparigas que nós vimos no programa serão mesmo representativos de toda a juventude portuguesa?
Claro que não. O que não falta ao país são jovens inteligentes, cheios de curiosidade, plenos de energia, e com muito espírito de iniciativa. Na Universidade, os meus alunos são tipos giríssimos a quem eu gosto mesmo de dar aulas e com quem me dá muito gozo conversar. Outro exemplo é que basta uma visita rápida à blogosfera, e salta logo de lá uma amostragem impressionante de miúdos cultos, inquietos, informados, e até, benção das bençãos, perfeitamente capazes de escrever em português. O grande problema com os participantes do concurso é que, para existir aquela amostragem, tem que existir no país muitíssimo mais gente assim. Portanto, este mal não está a afectar toda a juventude portuguesa, mas está a afectar uma parte significativa dessa juventude.
Então, mas eles não foram escolhidos a dedo pela produção para serem mesmo parvos?
Foram. O simples facto de uma maioria impressionante das meninas serem barmaids revela claramente a que tipo de sítios é que os produtores foram procurá-las. Mas isto não resolve minimamente o problema. A Endemol não andou propriamente três anos com detectives especializados a correr o país para encontrar os concorrentes. Imaginem quantos jovens assim têm que existir para, em dois ou três meses, sem grande esforço, se arranjar logo uma amostragem daquele calibre.
O que muita gente pensa é que eles foram especialmente treinados e pagos pela produção para se comportarem como se fossem mesmo completamente estúpidos e ignorantes. Mas estavam a fingir. Na realidade, até são muito inteligentes.
É mentira. Eu estive lá durante um mês, falei pessoalmente e sem ninguém a ouvir com vários dos concorrentes, e posso garantir que eles são mesmo como vocês o viram. Por exemplo, a menina que disse que não sabia quem era o Fidel Castro não sabia mesmo. Aquilo, desse ponto de vista, era completamente verdade. Aqueles jovens eram, mesmo, pessoas totalmente desinformadas. E volto a repetir: há centenas, talvez milhares, de outros como eles em Portugal.
Muito bem. Nesse caso, o que é que não está a correr bem na formação dos portugueses, para haver tanta gente que chega aos vinte anos com este nível de desconhecimento absoluto do país e do mundo?
Antes de mais nada, a escolaridade está a correr mal de certeza. Daí eu ter interpelado tantas vezes a ministra da Educação. Em Portugal, lamentavelmente, o ensino obrigatório só vai até ao 9º ano. Mas, mesmo sem ir até ao 11º como na maioria dos países da União Europeia, em nove anos de escola, se forem bem utilizados, pode aprender-se muita coisa. Se pensarmos que sem o 9º ano completo é impossível obter um emprego legal, então temos que deduzir logicamente que aquelas meninas, todas elas com empregos, tinham pelo menos estudado até este nível. Ora, se cumpriram a escolaridade obrigatória -- e reparem que isto implica, entre outras coisas, passar em exames nacionais -- e não aprenderam nada, então é mesmo porque já há uns bons dez anos que a escola portuguesa se tornou completamente disfuncional.
Em que é que podemos basear uma afirmação assim tão taxativa?
Aprender, e sobretudo no período coberto pelo ensino básico, quando estamos a completar e a organizar a formação do nosso cérebro, é muitíssimo mais que decorar meia dúzia de coisas que se debitam nos exames e se esquecem logo a seguir. É desenvolver o raciocínio lógico-dedutivo, treinar a capacidade de resolver problemas, adquirir a competência de sustentar um argumento tanto oralmente como por escrito, saber fazer associações livres cada vez mais ricas, mais rápidas, e mais instintivas – e, além de todas estas características que se limitam ao foro pessoal, aprender também é ganhar a capacidade de funcionar em sociedade, com tudo o que isso implica, que não é simples nem é pouco. O fair-play aprende-se. A noção de hierarquia, e consequentemente dos diferentes comportamentos a observar perante diferentes interlocutores, também se aprende. A gestão do tempo passado em divertimentos colectivos aprende-se. A noção dos limites num contexto de grupo também se aprende. O respeito pelos outros aprende-se. O exercício do livre arbítrio – pensem na pergunta que já todos os pais fizeram aos filhos, “então e se os outros meninos se deitassem a um poço tu também te deitavas?”-- também se aprende. E este tipo de aprendizagem, como implica a presença de adultos representativos de variadíssimas funções e de dezenas de miúdos em simultâneo, é obrigatoriamente uma aprendizagem que tem que ser feita na escola. Ora, se os nossos jovens estão a sair da escola sem saber absolutamente nada do que vem no currículo obrigatório de cada ano lectivo, e da mesma forma estão a sair da escola sem capacidade de raciocínio, nem de associação, nem de dedução, nem sequer de simples coabitação – perante um cenário destes, como é que podemos sustentar que a escola está a cumprir o seu papel?
Dizer que os alunos saem do nono ano sem saber absolutamente nada do que vem no currículo de cada ano não será um exagero grosseiro?
Infelizmente, não é um exagero em relação aos jovens representados pela amostragem de A Bela e o Mestre – e, como já disse, estes jovens são mesmo uma fatia deveras significativa daquela faixa etária. Posso dar uma lista rápida de matéria que faz parte do currículo até ao 9º ano que as concorrentes desconheciam em absoluto, e isto é só uma pontinha de nada do iceberg. O 25 de Abril. O Estado Novo, o Salazar, e até o Marcelo Caetano. A geografia de Portugal e do mundo. As Descobertas. Anatomia. Fisiologia. Biologia Celular. Fecundação. Zoologia e Botânica. União Europeia. A cultura e a política do período greco-romana. Gregos, fenícios e cartagineses como primeiros visitantes comerciais da Península Ibérica. O Terramoto, e, consequentemente, o Marquês de Pombal e tanto a arquitectura como as reformas pombalinas. E chega, mas é evidente que ficou imensa matéria de fora. Se elas estudaram tudo isto e já não se lembram de rigorosamente nada, então é porque a escola não cumpriu como devia os seus objectivos didácticos e pedagógicos. Para piorar a situação, se alguém seguisse os diários era gritante, absolutamente gritante, que as raparigas não sabiam estudar e os rapazes não sabiam ensinar. Isto é um sinal inequívoco de péssima preparação escolar, e uma vez mais respeitante ao período coberto pelo ensino básico.
Mas esta fatia da faixa etária em causa é capaz de não fazer grande diferença em relação ao funcionamento de todo o país.
Antes de mais nada, a escola tem que estar a funcionar mal porque eu todos os anos recebo uma nova fornada de alunos universitários interessados em Biologia, de uma fatia completamente antipódica da dos concorrentes do programa, que são cem por cento incapazes de escrever e discorrer em português fluente, escorreito, e sem um dilúvio de erros de ortografia e sintaxe. Além desta limitação, que é a mais flagrante, não sabem formular perguntas, são incapazes de elaborar tanto sínteses como paráfrases, e têm que ultrapassar muitas dificuldades antes de conseguirem estudar e trabalhar em grupo. Pior: só lá pelo terceiro ou quarto ano é que começam a perceber a enorme importância de ir assistir a conferências extra-curso, de participar em debates, de tomar iniciativas no âmbito de grupos de estudantes, de organizar críticas construtivas e representar os colegas, e até de actividades tão evidentes como viajar para aprender e ler por prazer.
Pronto, mas há sempre a alternativa da Universidade para lhes completar a preparação.
Quer isso dizer que quem não frequentar o Ensino Superior é automaticamente cidadão de segunda? Além de perigosa, é uma ideia completamente estúpida, até porque o país precisa imensamente de vários tipos de técnicos e quadros que não se formam nas Universidades. Mas enfim. Eu diria que, em termos de discriminação social à boa maneira do Estado Novo, isto é o mínimo comparado com o pressuposto extremamente capcioso de que este grupo mal formado de jovens não é representativo perante o país. Tanto quanto sei, este país é uma democracia. Em democracia, todos os cidadãos são representativos. O que quer dizer que todos os cidadãos têm que sair bem preparados da escola, por forma a poderem ser parceiros sociais activos. E, quando falamos em escola neste contexto, estamos incontornavelmente a falar de escola pública: aceitar que os pais têm ou que ser ricos ou que fazer sacrifícios terríveis para pôr os filhos num colégio privado onde os preparem como deve ser, já é aceitar sem resistência que a democracia portuguesa não está a funcionar. É triste, sobretudo se estivermos conscientes, como eu estou, de que isto já se tornou consensual para toda a gente, incluindo muitos professores do ensino público.
Mas a democracia também dá a possibilidade de, para quem não estiver interessado, pura e simplesmente não participar...
É extremamente discutível; mas, neste caso concreto, nem vale a pena discutir. Entre aquelas concorrentes que representam centenas ou milhares de outras, existiam pessoas que, pura e simplesmente, não sabiam sequer quem é o actual primeiro ministro. Podíamos escrever um tratado inteiro sobre o estado de alienação que torna esta ignorância possível – e sobretudo no caso do José Sócrates, que faz tudo o que pode para aparecer na televisão e foi através da televisão que cresceu na política – mas vamos limitar-nos a discutir o perigo que esta situação representa. Quando perguntei às meninas se elas costumavam votar, elas responderam que sim. Já mediram bem o problema de alguém que desconhece até o primeiro ministro exercer um direito de voto que vale tanto como o meu ou o vosso? A alternativa era elas não votarem, de tão desinteressadas que estão. Mas isso é exactamente o que fazem mais de metade dos eleitores americanos. E não é por acaso que um indivíduo limitado e perigoso como o George W. Bush já vai no segundo mandato, com todo o descalabro mundial que isso implica.
Só não é pacífico que toda esta falta de formação seja da responsabilidade da escola. Então e a família, os pais e os irmãos e os tios e primos e os avós, tudo o que se aprende em casa? Estamos a assumir que já nem sequer têm um papel a desempenhar?
Mais do que nunca, têm. Só que estamos perante dois problemas distintos que, demasiadas vezes, tornam a família praticamente irrelevante na educação dos jovens. O primeiro problema é, para simplificar grosseiramente uma realidade extremamente complexa, o divórcio. Era proibido antes da revolução, e foi tornado possível a seguir sem qualquer formação dos cidadãos para saberem viver com este tipo de liberdade depois de séculos de prisão para a vida: os pais deixam de se falar se é que não se insultam mesmo da forma mais desbragada, a participação conjunta de frente unida na educação dos filhos é tratada com pés para usar um grandecíssimo eufemismo, as relações-relâmpago ou extremamente conflituosas são vividas à frente dos miúdos sem uma única explicação, tanto a chantagem emocional como a cedência cega para comprar a boa vontade das crianças se usam a torto e a direito – e é evidente que tudo isto é absolutamente incompatível com a educação que devia obrigatoriamente receber-se em casa, até porque não há outro sítio em que estes ensinamentos possam administrar-se. Bom. Isto já é péssimo, mas o segundo problema é igualmente grave, e muitas vezes mistura-se com o primeiro para tornar a educação dos portugueses um verdadeiro desastre: a vida no nosso país tornou-se extremamente difícil; e, em consequência, tanto o pai como a mãe trabalham cada vez mais. Acho muito saudável que ambos os pais trabalhem e tenham a sua carreira pessoal, mas, estupidamente, o Portugal da democracia, ao contrário de tantos outros países da Europa, nunca criou qualquer espécie de medidas destinadas a proteger e incentivar a família. Eu própria, que sou mãe solteira de dois rapazes adoptados e não estou incluída pelo IRS entre os portugueses pobres, teria pelo menos mais dois filhos se recebesse ajuda do Estado. E esta ajuda não é só dinheiro: é bom acompanhamento em termos de saúde, são boas creches, é boa pré, são licenças pagas pelo patronato em todas as situações que requeiram de nós dedicação particular, são regalias fiscais em tudo o que tenha a ver com a formação deles, e é mais um grande pacote de medidas destas que são correntes e antigas nas sociedades mais funcionais da Europa.
Nesse caso, poderíamos concluir que um bom ensino e uma boa política de apoio à família impediriam a formação da tal fatia etária de ignorância e alienação que nos foi brutalmente revelada com A Bela e o Mestre.
Não. Falta todo o enquadramento social que motiva os miúdos para se interessarem pelo país pelo mundo e que sustenta a sua vontade de descobrir e aprender, que ou é usada antes das responsabilidades profissionais, familiares e financeiras, ou já não pode ser usada.
De onde é que devia vir esse enquadramento social?
De um número muito grande de programas públicos, e de benefícios fiscais tangíveis e compensadores para as entidade privadas interessadas em promovê-lo. Crescer e aprender em democracia, e sobretudo no nosso mundo globalizado e sobrecarregado de informação, implica um conjunto muito grande de actividades que nem a família nem a escola que podem assegurar e que é urgente criar em Portugal, onde tudo isto foi cronicamente negligenciado desde a instauração da democracia. Colónias de férias. Viagens culturais – e super-curtidas, senão não funciona – pelo mundo. Desportos de equipa para todos. Clubes de debate, passíveis de preparação para a participação em grandes debates nacionais ou internacionais. Clubes de leitura. Aprendizagem e utilização de línguas estrangeiras. Intervenção social. Um mínimo – gratificante e feliz – de contacto com todas as formas de arte. Treino em conseguir fazer coisas a sério com as próprias mãos, seja em olaria seja em cartazes de concertos. Camaradagem e fogueiras à noite debaixo das estrelas. Introdução ao ambientalismo sensato e bem fundamentado. Trabalho agrícola, como quando nós éramos putos e íamos ganhar umas massas para as vindimas – mas, agora que a Europa está toda unida, por que é que ninguém organiza isso por forma a juntar o útil ao agradável, que são brigadas internacionais em vinhas longínquas? Pelo amor de Deus, nem as famílias são super-famílias nem as escolas são super-escolas. Quando as circunstâncias mudam, as medidas sociais têm que mudar com elas para que a educação progrida em vez de regredir. Quando eu era miúda e tinha todo o tempo e energia do mundo, devorava um mínimo de um livro por dia. Mas, nessa altura, a internet não existia. Se eu fosse miúda agora e pudesse escolher entre ler A Maravilhosa Viagem de Nils Holgersen Através da Suécia ou jogar on-line o World of Warcraft, provavelmente escolhia mesmo o aquele jogo estranhamente viciante a que os meus filhos se agarram como se a sua vida dependesse disso. E de certeza que aprendia algumas coisas. Mas, além de não aprender a ler, além de não descobrir todo o universo maravilhoso que a literatura nos revela, ainda por cima ficava cada vez mais anti-social. Pela mesma ordem de razões, eu provavelmente passei a minha juventude enfiada no teatro, na ópera, e na cinemateca, porque nessa altura não existia a Boum de Idanha-a-Nova, tal como não existia o Festival do Sudoeste, tal como, de todo em todo, não existia a noite do Bairro Alto que dura até ser dia. Não é que as coisas sejam mutuamente exclusivas. Apenas precisam de ser devidamente equilibradas – e, hoje, esta tarefa é demasiado complexa para ficar simplesmente entregue à escola e à família, como ficava dantes. Sem uma orientação melhor organizada e cuidadosamente sistematizada, chegámos de facto a uma encruzilhada civilizacional que permite crescer-se e chegar-se à vida adulta em estado de alienação total.
Isto tem mensagem final?
Portugueses, exijam. Nós queremos o melhor para os nossos filhos, e temos esse direito. Para nem mencionar o facto óbvio de que, se a gente lhes der o melhor, o país melhora assim que eles votarem.
Clara Pinto Correia