FERNANDO BARRIGA
Como os exploradores do passado
Fernando Barriga, 54 anos, dois filhos, professor Catedrático de Geologia na Universidade de Lisboa e actual director do Museu de História Natural, tem o perfil e a pose dos grandes exploradores do passado, que transformaram o século XIX no período épico da sua ciência. Foram eles que expandiram a idade da Terra para biliões de anos, foram eles que descobriram no registo fóssil o vestígio de uma longa sequência de espécies extintas, foram eles que tornaram o Dilúvio de Moisés numa cheia de menor de pouquíssima importância à escala global. Barriga enfrenta outro desafio épico que se levanta agora à Geologia: como travar o avanço acelerado do mar sobre a Terra? Como proteger as praias, as falésias, todas as zonas litorais que temos tantas vezes visto na televisão a caírem como castelos de cartas? Enquanto o povo português procura desesperadamente um culpado para comparecer perante a sua justiça, seja a Natureza, seja o Governo, seja o presidente da Câmara lá da zona, ele aponta tranquilamente o dedo a todas as pessoas que nos rodeiam e recorda-nos, com provas atrás de provas e estudos sobre estudos, que o aquecimento global não é nenhuma brincadeira. Mas, enquanto o flagelo do Terceiro Milénio não se reduz nas suas dimensões apocalípticas, ele já está a projectar estratégias para ir tapando os buracos no prazo imediato. Sem alarde. É ciência.
Foi no edifício do Museu de História Natural que eu aprendi a ser bióloga. Entrar na imponente alameda das palmeiras que dá para a Rua da Escola Politécnica faz-me sempre voltar a ter dezoito anos. Aqui dentro, há ossadas que partilham expositores com réplicas, há meninos que abrem muito os olhos para verem bem, com todos os pormenores, os bichos estranhos de outros tempos – e, a fazer brilhar de felicidade todo o rosto do Fernando, há uma profusão espantosa de minerais bizarros, cristais oblongos, rochas de milhares de anos onde viveram bactérias que já não existem. Não sei se percebem que isto é tudo absolutamente fascinante, diz ele.
OK, então vamos lá. O mar enlouqueceu, e está a dar cabo da nossa costa. De uma vez por todas: de quem é a culpa?
Não costuma ser assim muito fácil atribuir culpas em situações complexas, mas este é um daqueles casos em que podemos cortar a direito: o aquecimento global é culpa das pessoas, e é culpa dos políticos. Toda a gente sabe que o clima está a mudar, e isso pode originar mudanças dramáticas na Terra, e sobretudo na vida que estamos habituados a viver.
Mas toda a gente sabe que o clima tem mudado ao longo do tempo...
Sim, toda a gente sabe que já houve grandes glaciações. Ou que o clima de Lisboa já foi muito mais frio do que é agora.
Então por que é que, desta vez, vocês dizem que as mudanças são causadas pelo homem?
Pois, era bom podermos encolher os ombros e não fazer nada. Mas, quando nos damos conta, cientificamente, com centenas de dados comprovativos, de que desta vez o homem é parte substancial da mudança, então a coisa muda de figura.
Mas como é que se mede a mudança climática?
Olha, a subida do nível do mar, de que temos falado tanto em Portugal, é uma consequência disso. Há variações seculares da mudança do nível do mar, que eram da ordem dos 01/0.2 milímetros antes da revolução industrial. Depois disso, o que acontece é que o aumento da temperatura que já se verificou, atribuído quase todo ao homem, é de cerca de 6ºC desde meados do século XX. Esses 6ºC não são um número muito grande para os nossos sentidos, mas o que sabemos claramente é que estamos muito mais tempo fora do valor médio: o clima muda todos os dias. A temperatura média de Agosto em Lisboa é de 28ºC e continua a ser, mas mas estamos mais tempo fora do valor médio. Temos picos de calor como o de 2003, temos máximos de chuva, máximos de frio, as ondas no oceano estão cada vez mais altas. Sabes que os seguros marítimos aumentaram todos de preço? Isso é por que as tempestades estão cada vez mais intensas.
E porquê?
Antes de mais nada, o calor faz aumentar o tamanho da água. Entre 10 e 12ºC, a água sobe de volume. Quando tens um aumento destes numa massa tão grande, o crescimento só pode ser para cima. Por outro lado, o aumento da temperatura desencadeia a fusão das águas polares, e estamos a falar de valores extremamente significativos. As zonas vulneráveis dos gelos da Antárctida podem fazer subir o nível do mar uns bons seis metros, e isto não é o gelo todo, é só o dos glaciares da Antárctida Ocidental, onde há muito gelo em cima do continente. E os relatos que vêem do Ártico apontam para que, daqui a poucas décadas, haja um processo de fusão dos gelos desmesurado.
E isto tudo por nossa culpa?
Há um registo geológico extremamente importante no sentido de o nível do mar já ter estado muito mais baixo que hoje. Estamos num período intra-glaciário. Estes períodos são cíclicos. Quando ocorrem, a tendencia do mar é para descer. Mas, neste momento, estamos confrontados com uma tendência muito forte de subida.
Que nós provocámos?
Ouve, se a subida da temperatura for causada pelo homem, segue-se inevitavelmente uma subida do nível do mar causada pelo homem.
Todos concordam?
Já nenhuma dúvida é razoável. Os últimos relatórios apontam todos claramente nesse sentido. Uma coisa destas nunca se demonstra de forma absoluta, mas os argumentos contra o factor humano são cada vez mais académicos, no mau sentido da palavra. O grau de certeza de que a alteração climática á atribuída ao homem é de mais de 90%, e isto é a versão oficial, aprovada politicamente.
Fala-me de um indicador que, a ti, te convence mesmo.
O registo das paleoatmosferas. Das atmosferas que existiram na Terra desde há de dez a vinte mil dezenas de milhares de anos atrás. Encontramos esse registo nas falhas que há no gelo. São amostras de uma atmosfera antiga que ficou ali aprisionada. Aí temos uma indicação precisa da idade de cada segmento, e podemos analisar a atmosfera fóssil, incluindo o teor em dióxido de Carbono que ela tinha. .
E então?
Há geralmente uma correlação positiva entre o dióxido de Carbono e a temperatura: quanto mais quente está a Terra, mais vestígios de CO2 se encontram. Por vezes, a subida da temperatura antecede o aumento do CO2. Pode ser que existam causas independentes que desencadeiam estes efeitos, como as modificações da órbita da Terra. Mas a mudança actual é sistematicamente ao contrário.
Ou seja?
Agora, nesta mudança climática, temos sempre primeiro a subida do CO2. Para isto, não há outra explicação senão a influência do homem.
E como é que isso funciona na costa portuguesa?
As modificações da costa são as principais causas da situação a que estamos a assistir, e isso é devido a falta de sedimentos.
O que é que queres de dizer com isso?
Há falta de areia nas praias.
E porquê?
Os rios transportam naturalmente uma grande uma grande parte de sedimento para o mar. A areia que hoje está na tua praia não é a mesma do que quando eras criança. Há um transporte de areia de Norte para Sul que é feito pelos rios, e em determinados pontos há os chamados sumidouros de sedimento, onde a circulação da areia é feita para longe da costa e vai parar ao mar profundo, pelo que se perde em relação à areia do litoral. Mas, enquanto circula junto à costa, é ela que protege o litoral, interpondo-se entre as rochas sólidas e as ondas. Se a quantidade de areia for menor tens a dinâmica do mar mais perto da costa, e quanto menos tempo o sedimento estiver junto ao litoral pior.
Mas aqueles pontões todos que nós agora passamos o tempo a ver não se destinam, exactamente, a reter a areia e proteger o litoral?
Não é assim tão simples. Um esporão perpendicular à costa só protege um pequeno triângulo junto a esse ponto. Logo ao lado há uma zona de maior depósito, mas a maior parte da areia perde-se. Isto já se faz há muito tempo, mas, a prazo, dá mau resultado. É muito mais eficaz fazer uma construção paralela à costa para manter a areia junto do litoral.
E é só por isso que temos assistido a tantos desastres?
Claro que não. Como os temporais são mais intensos, as marés vivas também são mais vivas, o mar está muito mais agitado, e tudo isto causa uma erosão fortíssima.
Disseste que o sedimento costumava vir para a costa com os rios. Deixou de vir?
Deixou de vir nas quantidades habituais que mantinham o equilíbrio no litoral, em grande medida por causa das barragens. Até ao início do século XX vinha muito mais areia nos rios. Há uma quantidade enorme de areia que agora fica retida pelo caminho, e isso, para mim, é a principal causa do que tem estado a acontecer. Há barragens em todo o lado. Em Portugal, não há um único rio que vá para o mar que não tenha uma barragem. Isso, sem a menor dúvida, é uma péssima gestão de recursos e um planeamento ambiental desastroso.
E há mais?
Bem... há todo o desgaste relacionado com a agricultura.
Então, mas a agricultura também tem a culpa?
Ao contrário do que dizem os poetas sobre os campos dourados, a agricultura implica revolver o solo e deixá-lo exposto à intempérie uma grande parte do ano. Se houver uma grande chuvada depois da colheita, as partículas as partículas mais finas, exactamente as mais nutrientes, são arrastadas até às barragens; e isso provoca uma grande descida de fertilidade nos solos, e o material que pode contribuir para essa fertilidade está no fundo da barragem.
Dá ideia de que já tens aí um belo projecto de recuperação de solos...
Estou a trabalhar nisto há dez anos. Não tiramos água absolutamente nenhuma da barragem. Vamos mesmo ao fundo, para lá da parte grosseira que está por cima. Tiramos uma lama com água suja, que tem que ser diluída, e depois é preciso decantar o sedimento. Só volta para a albufeira a água limpa. A lama é re-injectada no solo, e olha: em terrenos que eram completamente áridos já criámos tulipas francamente melhores que as dos melhores viveiros.
Onde é que fazes isso?
No Brasil.
Porquê?
Porque a Europa tem excesso de produção alimentar e não há grandes interesses agrícolas.
E a tal parte grosseira que está por cima, não pode ter, também, qualquer préstimo?
Oh. Esse, agora, é um dos nossos grandes interesses. A parte grosseira é a tal areia que pode ser levada até ao litoral! Como o transporte é caro, o material pode ser fornecido à construção civil, com bons incentivos – e, assim, talvez consigamos que os madeireiros não tirem a areia que é da praia.
Então ainda há esperança.
Enquanto houver ciência.