O mundo fantástico da blogosfera permitiu-me descobrir sem esforço a versão original integral de um certo poema de Álvaro de Campos que sempre esteve entre as minhas grandes preferências por ser a forma mais eficaz de afastarmos os chatos profissionais e os proselitistas de elevado autismo, ao mesmo tempo que fazemos disretamente notar o valor acrescentado da nossa eudição sobre a deles. Com muito prazer, aqui vai:
LISBOA REVISITADA
Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafisica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) ¬
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!
Ó céu azul o mesmo da minha infância¬,
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo …
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio, quero estar sozinho!
E ESTÁ TUDO DITO
Homem assombroso, o Pessoa. Não pensem que são só os poemas dos seus heterónimos que podem ajudar-nos a afastar companhias desagradáveis e a acabar conversas insuportáveis. Oferece-vos alguns aforismos dele. Usem-nos todos os dias.
“Quer pouco: terás tudo.
Quer nada: serás livre.”
“O Essencial da arte é exprimir;
o que se exprime não interessa.”
“Se alguma vez sou coerente, é apenas como incoerência saída da incoerência.”
“Descobri que a leitura é uma forma servil de sonhar. Se tenho de sonhar, porque não sonhar os meus próprios sonhos?”
“Todos os meus escritos ficaram inacabados; sempre novos pensamentos se interpunham, associações de idéias extraordinárias e inexcluíveis, de término infinito
O Caráter da minha mente é tal que odeio os começos e os fins das coisas, porque são pontos definidos.”
“Que este processo de fazer arte cause estranheza, não admira; o que admira é que haja cousa alguma que não cause estranheza.”
O Caráter da minha mente é tal que odeio os começos e os fins das coisas, porque são pontos definidos.”
“A uma arte assim cosmopolita, assim universal, assim sintética, é evidente que nenhuma disciplina pode ser imposta, que não a de sentir tudo de todas as maneiras... Que cada um de nós multiplique a sua personalidade por todas as outras personalidades.”
Obrigado, Mestre. E, já agora, aproveito para recordar-vos o que tinha ele a dizer sobre a Amizade, tantas vezes a melhor coisa que temos na vida:
“Meus amigos são todos assim: metade loucura, outra metade santidade.
Escolho-os não pela pele, mas pela pupila,
que tem que ter brilho questionador
e tonalidade inquietante.
Escolho meus amigos pela cara lavada e pela alma exposta.
Não quero só o ombro ou o colo,
quero também sua maior alegria.
Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto.
Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade.
Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.
Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem,
mas lutam para que a fantasia não desapareça.
Não quero amigos adultos, nem chatos.
Quero-os metade infância e outra metade velhice.
Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto,
e velhos, para que nunca tenham pressa.
Tenho amigos para saber quem eu sou,
pois vendo-os loucos e santos,bobos e sérios, crianças e velhos,
nunca me esquecerei de que a normalidade é uma ilusão…”