sábado, 17 de fevereiro de 2007

ENTREVISTA: Ricardo Santos

RICARDO SANTOS
Como quem veio de longe

Por que é que fez muita falta escutar a voz dos filósofos durante todo o debate sobre o aborto que marcou os últimos meses da vida portuguesa? Provavelmente, pela mesma ordem de razões que torna tão desastrosa a eliminação dos exames de Filosofia no ensino secundário. Contemplando estas questões cruzadas que de uma forma ou de outra marcam a identidade nacional, Ricardo Santos, presidente da Sociedade Portuguesa de Filosofia, Professor Auxiliar da Universidade de Évora e investigador no Instituto de Filosofia da Linguagem da Universidade Nova de Lisboa, quarenta anos, três filhos, fala com a grande calma de quem já veio de muito longe e sabe que tem pela frente um grande caminho. A Filosofia formou o núcleo duro dos primeiros passos científicos do mundo, e confronta-se com um futuro emocionante, pleno de desafios cada vez mais complexos. Trazê-los até aos mais jovens e imbuir a sociedade do seu espírito acutilante é a missão de todos os que se juntam à sua volta.

A Sociedade Portuguesa de Filosofia partilha o andar com outras sociedades científicas num prédio igual aos outros da Avenida da República. Está frio na rua, e as salas de pé direito elevadíssimo parecem todas completamente geladas. Um cinzeiro grande marca a zona de tolerância sobre a mesa de reuniões. Ricardo Santos deixou de fumar há pouco tempo, num esforço que lhe pareceu “curiosamente fácil”. A calma das suas respostas está infectada pela energia contagiosa dos que amam a sua área de estudo e não hesitam em partilhá-la com o mundo. O debate sobre o aborto tem sofrido de um abaixamento inaceitável, diz ele. E, aí, nota-se mesmo a falta dos filósofos.

Porquê?

Porque em Portugal ouviu-se muito pouco a voz dos filósofos a debater esta questão, quando há muito trabalho de reflexão filosófica sobre o problema ético do aborto que era importante ter em conta. E também porque a formação em Filosofia nos dá uma grande disciplina de argumentação, que nestes casos faz toda a diferença. Um filósofo está, em princípio, mais preparado para evitar os erros mais frequentes num debate: conclusão precipitada, petição de princípio, problemas ambíguos, uso de falácias. Estamos precavidos contra o apelo à emoção, o escamotear da informação, a utilização de informação manipulada intencionalmente, temos esse arcaboiço. Que é sempre um contributo valioso para um debate público tão importante como este.

O que diria um filósofo sobre o aborto, se lhe perguntassem?

Por exemplo, começaria por mostrar que a questão do aborto está intrinsecamente ligada ao problema da vagueza.

E isso é o quê?

É um problema muito antigo, conhecido desde a Grécia antiga, sob a designação de “paradoxo de sorites”. Quantos grãos de areia são necessários para formar um monte? Se eu tiver três grãos de areia, não tenho um monte. E se só tiver quatro, também não. Em geral, se não tenho um monte, e acrescento apenas mais um grão, não passo a ter um monte. Mas, por este raciocínio, seria levado a concluir que uma enorme duna na Costa da Caparica também não é ainda um monte, pois os grãos de areia que a formam foram, imaginemos, acrescentados um a um. Ora, há muitos casos análogos. Por exemplo, os carecas: a partir de quantos cabelos é que passo a ser careca? E, no caso do desenvolvimento do feto, a questão é a de saber ao fim de quantos dias passamos a ter um ser humano.

Parece um problema filosófico criado de propósito para este debate.

Ele mostra que há certos processos de mudança – de uns quantos grãos de areia para um monte, de cabeludo para careca, ou de óvulo fecundado para ser humano – que, devido ao seu carácter contínuo, tornam muito problemático o estabelecimento de uma linha divisória precisa. Será que essa linha não existe, e por isso haverá certas pessoas das quais não é verdadeiro nem falso dizer que são carecas, ou ela existe, mas nós não a conhecemos? No caso do aborto, esta dificuldade parece favorecer mais a posição conservadora, pois todos recusamos o infanticídio e, se não houver linha divisória, o aborto será tão grave como o infanticídio. Mas isto é apenas um exemplo de como há muita coisa pensada e estudada pelos filósofos sobre problemas desta natureza, que são relevantes e que seria importante ter trazido para iluminar mais o debate.

Então por que é que o Ricardo acha que os filósofos não foram chamados a participar?

Por pura ignorância? É uma possibilidade. Desconhecendo a Filosofia, é provável que se conclua, logo à partida, que ela não tem coisas relevantes para trazer para este debate. Mas eu creio que, no afastamento dos filósofos, há também uma boa dose de preconceito: considera-se a questão do aborto demasiado séria para justificar suportar-se esta problematização fria, abstracta e racional dos filósofos. Mas sentimos a falta deles quando a questão começa a ser discutida de um modo que abusa do apelo à emoção ou que pede sobretudo a identificação das pessoas com certos grupos de opinião, sejam eles católicos, feministas, esquerdistas ou outros.

Há mais problemas filosóficos que sejam relevantes num debate tão humanamente dilacerante?

Há, e são completamente ignorados pela maioria das pessoas. Cito-lhe mais um exemplo: o problema da consciência e da capacidade de sentir dor. Quando é que isso começa no desenvolvimento do feto? Não se tem conseguido responder. E será possível algum dia responder? Ora, a Filosofia tem uma longa tradição de reflexão sobre o conhecimento das outras mentes. Como posso eu conhecer a consciência do outro? Como posso conhecer a dor dos outros sem a ter, se a dor é uma experiência completamente privada? Cientificamente, podemos tentar postular medidas observáveis que tomamos como reveladores da presença de consciência. Mas como é que vamos justificar esta correlação entre o observável e o inobservável? Todo esse legado de problematização que existe na Filosofia devia ter sido trazido para a linha da frente.

E eu que, dos problemas filosóficos, só conhecia aquela história do barco reconstruído...

Ah! Esse é o barco em que Teseu regressou a Atenas depois de vencer o Minotauro. Os atenienses decidiram preservá-lo e, à medida que as tábuas envelheciam, eram substituídas por novas. A dada altura, restavam muito poucas tábuas originais e colocou-se a questão: É este ainda o barco de Teseu? Actualmente, fazemos uma modificação do problema: o barco sai de um porto, empreende uma grande viagem, leva madeira no porão, e vai uma chalupa atrás. Durante a viagem, os marinheiros têm que ir mudando as tábuas, e vão deitando fora as velhas. A chalupa que vai atrás aproveita as tábuas velhas para reconstruir o barco. Quando regressam ao porto, o barco da frente não tem nenhuma tábua original, e o barco que vem atrás tem essas tábuas todas. Qual deles é o barco que partiu à frente? E, a ser o segundo, como é que a tripulação que partiu no primeiro barco mudou de barco sem nunca ter desembarcado?

Com tantas contribuições interessantes para oferecer ao nosso pensamento, por que é que o Ministério da Educação decidiu abolir os exames de Filosofia?

Não sabemos. A sério. Já perguntámos várias vezes, e nunca obtivemos resposta. Ficamos numa completa perplexidade, porque o que temos pela frente parece uma medida puramente administrativa, da qual se desconhecem os fundamentos, didácticos, científicos, ou outros.

Será embirração particular da Ministra?

Esta medida é completamente contraditória com o restante discurso da própria Ministra sobre a disciplina, que continua a ser obrigatória em todos os cursos no 10º e 11º anos. Isto implica que a Filosofia é importante para a formação geral dos estudantes, pelo que não se percebe por que é que para Português existe um exame nacional, e para Filosofia não.

A mim parece-me uma medida ainda mais grave do que abolir a disciplina. É uma forma explícita de dizer que embora tenha que se ouvir falar “daquilo”, “aquilo” não é importante. É tão pouco importante que nem se justifica existir exame.

Há um conjunto de razões que tornam esta medida contra-producente. A ideia-chave por trás de um exame é ter uma medida de aferição: um instrumento que, associado a outros, permite aos agentes do processo educativo aferir a sua acção e gerir uma série de coisas. Sem exame, ficamos privados da informação que daí derivava. Essa informação permite-nos ver se os programas estão a ter bons resultados, se os manuais estão a ser úteis, se os métodos são adequados. Com o exame, também temos funções de normalização do ensino da disciplina nas várias turmas que há em cada escola e nas várias escolas que há ao longo do país. No que diz respeito aos estudantes, é mais que sabido que a sua atitude perante uma disciplina, nomeadamente no esforço que ela merece, muda completamente conforme ela tem ou não exame. É fundamental que esta disciplina exista, e não ter exame é um sério revés para a sua imagem de seriedade.

Na sua opinião, quais vão ser as consequências da abolição do exame?

Vamos ter várias consequências, a nível dos vários agentes envolvidos. Do lado dos alunos, vamos certamente ter um forte desinvestimento quando a matéria que está a ser ensinada não vai ser sujeita a avaliação externa. Só quem não tem experiência de ensino é que pode não saber disto. Os professores também mudam as suas práticas consoante existe ou não um exame nacional. Os manuais, os autores, as editoras, o próprio Ministério da Educação quando está a fazer programas e a monitorizar a sua aplicação, todos vão ressentir-se. Não existe só um efeito: a abolição dos exames provoca uma multiplicidade de efeitos que dá uma boa medida da importância do ensino da Filosofia na sociedade portuguesa, tanto qualitativa quanto quantitativa. Vamos saber menos sobre Filosofia do que devíamos, e vão ser menos as pessoas a interessar-se por ela.

Bom, e aqui põe-se a vexata quaestio... para que é que serve a Filosofia?

Se pensarmos só ao nível de um utilitarismo mais básico, não serve para consertar canos. Claro que não. Mas também não é isso que queremos dar aos nossos estudantes. Se fizermos a pergunta com um sentido mais economicista, no sentido de o que é que se ganha com isso, aí já podemos ter nuances na resposta. O mundo contemporâneo é diferente na forma como mede o valor de mercado das coisas. Como actividade intelectual, a Filosofia produz resultados que não é completamente óbvio que não tenham valor de mercado. Até em Portugal já houve livros de Filosofia que foram best-sellers. Ainda recentemente houve notícias de empresas norte-americanas a recrutarem filósofos para os seus conselhos de administração. Mas as coisas têm que ser vistas de outra maneira.

Como?

A Filosofia serve verdadeiramente para fins de carácter intelectual. É um instrumento que é insubstituível para desenvolver nos nossos jovens a capacidade de pensamento e de análise crítica de problemas e de argumentos. E também uma capacidade invulgar de interpretação de textos. Sempre foram estes os verdadeiros contributos da Filosofia. Há outras áreas do saber que cultivam também este género de capacidades, daí que muita gente sublinhe a proximidade da Filosofia com a Matemática, com a Física, com a História ou com a Literatura. Mas a Filosofia reúne, por tradição, esta capacidade que lhe é muito própria de desenvolver habilidades de análise e de pensamento crítico, de reflexão autónoma, que não se encontra noutras áreas. É fundamental para a formação de cidadãos autónomos, intervenientes no espaço público, na vida da sociedade.

O Ministério terá tomado esta decisão por a Filosofia ser considerada particularmente difícil de ensinar?

Eu fui professor do secundário, e posso responder pela minha experiência. A Filosofia não é mais difícil de ensinar do que outras disciplinas. A Matemática, a Física, a História, a Literatura, são de um ensino igualmente complexo. Claro que não podemos ensinar jovens de quinze e dezasseis anos como ensinamos os universitários, mas estes alunos têm uma coisa maravilhosa do seu lado: são de uma curiosidade intelectual inesgotável, ainda muito crua, sem deformações. Parecem esponjas. E isso faz com que captem e sejam captados pelo essencial dos problemas de que a Filosofia vai tratar.

Já falámos do problema da vagueza, do paradoxo de sorites, da questão da consciência, do barco de Teseu...

Sim, esses são bons exemplos de problemas filosóficos, importantes e também interessantes, que podem ser apresentados de modo claro e acessível. O barco de Teseu tem de ser explicado aos alunos do secundário como um problema sobre a identidade e a persistência dos objectos. Relaciona-se facilmente com o célebre aforismo de Heraclito “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”: os elementos que compõem um objecto são substituídos por novos e isso leva-nos a questionar a identidade do objecto. Platão interpretou o aforismo pelas suas consequências epistemológicas: se o mundo visível está em constante mudança, se nele tudo é fugaz e nenhum objecto persiste no tempo, então não podemos conhecê-lo, pelo que não poderia haver uma ciência deste mundo. De onde Platão infere que o mundo que vemos não é a verdadeira realidade.

Ou seja, tudo é questionável.

Não há dúvida de que os problemas filosóficos têm a particularidade de pôr em causa de modo surpreendente as ideias feitas, coisas que parecem evidências para o senso comum. Como a relação entre o pensamento e a existência, por exemplo. Tendemos geralmente a achar que podemos pensar no que não existe, mas será que podemos mesmo? Se uma coisa não existe, como posso realmente pensar nela? Não vale responder que a coisa existe no meu pensamento, que tenho uma imagem mental do diabo, por exemplo, e que é nela que penso quando penso no diabo. Porque essa imagem ou representação mental existe e, nesse caso, não estaria a pensar em algo que não existe. Mas se o pensamento está necessariamente vinculado à existência, daqui decorre que, se consigo realmente pensar em algo – em deus, por exemplo –, então isso existe. O que seria uma prova surpreendemente fácil da existência de certas entidades. Como os números, por exemplo.

É dessas coisas que se fala nas aulas de Filosofia do secundário?

Sim, entre muitas outras. Mas é preciso que os professores usem a linguagem e os métodos adequados. E que possam socorrer-se de bons materiais didácticos, como manuais escolares de qualidade. As coisas têm melhorado bastante ultimamente, mas há ainda muito a aperfeiçoar.