terça-feira, 20 de março de 2007

ENTREVISTA: João Medina

João Medina
COMO QUEM VIU TUDO

João Medina, 66 anos, Professor Catedrátrico do Departamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, nasceu em África e viveu no mundo. Casado há 43 aos, sem filhos, deixou uma miríade de obras publicadas ao longo do caminho. E agora, como uma verdadeira pedrada no charco do marasmo do panorama literário nacional, ofereceu-nos um romance impressionante de lucidez e rigor, Os Náufragos do Mar da Palha, erguido acima de todas as banalidades que se escreveram em 2006 como um monumento de inteligência e bom gosto saído dos dedos dotados de alguém que viu tudo. Este grande académico é, também, um grande escritor. Anima-o a alegria de partilhar ideias difíceis e conhecimentos raros que está por trás de todos os grandes marcos do romance universal. Considera-se a si prório um dissidente, e herdou uma história de família toda marcada pelas dissidência: descende de um clã português deportado para Cabo Verde por D. Miguel, partindo daqui para a vida no mundo numa história tão feita de aventuras e naufrágios como as trágico-marítimas.

A casa de João Medina no Monte Estoril está aninhada num nono andar com uma vista inesgotável para cima do mar. Os livros dominam o interior, e onde se afastam do caminho revelam áreas de convívio ou de trabalho onde apetece demorar a passagem. Mesmo sem perguntarmos, sabemos que tudo tem uma história própria que o proprietário acarinha. O sol entra a jorros pelas janelas, e ele não pára de me trazer chávenas café da cozinha: cheguei aqui em bastante mau estado, depois de uma longa noite em directa, e esta paz sabe-me pela vida. Quis falar da apatia e do alheamento do povo português em relação à história, diz ele.

Como é que podes chamar apático ao povo que fez as Descobertas?

E as Descobertas serviram para quê? O império colonial não era útil, não era rentável, do ponto de vista conómico não servia para nada.

Mas era empolgante.

Eu vejo-nos mais como uma nação falhada. Fez-se aquele império sem existir um projecto colectivo de desenvolvimento.

Faltaram contribuições importantes?

Estás a referir-te aos judeus? Mas nós fomos mais longe que isso. Não expulsámos só os judeus. Constituímos uma sociedade talibã à portuguesa que levou à expulsão de outros grupos, como os liberais ou os protestantes. Quem ficou instalou-se num tal conformismo que aceitou as situações mais aberrantes.

Foi mesmo a expansão arítima que causou tudo isso?

Antes da expansão marítima, temos um projecto colectivo em que está envolvida toda a população: atingimos o auge de lusitanidade que está tão bem representado nos paineis de Nuno Gonçalves, com o povo, o clero, a nobreza, e diz-se que até um rabino. Existia uma pluralidade que implicava todos os extractos da sociedade.

Essa pluralidade desapareceu com o império?

O império foi a nossa grande faina histórica, mas nem sempre correu bem e teve um preço pesado. A nossa última tentativa imperial, depois do fracasso da Ásia e do Brasil, foi o Portugal Africano, na sequência do triunfo liberal. Mas os homens como o naturalista Bocage conduziram à tragédia do mapa cor de rosa, um dos maiores desastres da nossa política colonial. Resta-nos o mito do terceiro império, acarinhado pelo governo, que perdura até ao 25 de Abril. Só nessa altura é que se fecham as portas do império, e voltamos a ser quem somos.

E quem somos, afinal?

Somos europeus. Mas parece que a Europa não chegou aqui. Nunca fomos bons alunos europeus. Somos marginais em relação à Europa. Não temos a consciência europeia que nos tornaria prósperos.

Que consciência é essa?

A União Europeia foi criada pelos seis países mais ricos da Europa, e, originalmente, destinava-se a ser um clube de ricos, onde se juntavam os países de grande sucesso económico. Nós entrámos para um clude desses com a ideia de ser um país evoluído, mas o sonho europeu português falhou. Só não estamos mesmo na cauda por causa da Roménia e da Bulgária, mas eles vão ultrapassar-nos.

Como é que defines essa situação?

É amargurante. Como historiador e romancista, creio que estamos perante um facto dramático: não temos a grande cultura europeia, que chegou a prosperar entre nós nos séculos XV e XVI mas logo a seguir foi prevertida pela inquisição. Não aproveitámos as oportunidades que a Europa nos deu. Somos uma espécie de Mónaco, mas para muito menor. Dado o estado de total debilidade económica em que nos encontramos, estamos verdadeiramente na periferia da construção da Europa comunitária sonhada por Jean Monet.

A ouvir-te falar, parece que a expulsão dos Judeus no século XV contribuiu decisivamente para esse estado de coisas moderno.

A primeira sinagoga do Novo Mundo, o Rochedo de Israel, no Recife, foi criada durante a ocupação holandesa por judeus portugueses – uns assumidos e perseguidos, e outros refugiados na Holanda. Isto foi em 1638. Em 1654 partiram para Nova Iorque, então Nova Amsterdão, onde criaram as primeiras comunidades sefarditas, e primeira sinagoga de Nova Inglaterra, e depois, no século XVIII, também criaram uma em Curaçao. Estamos a falar de pessoas extremamente empreendedoras.

Mas as Descobertas correram mal também por outras razões.

É uma história exemplar de má visão: a construção do império português foi sempre feita por via estatal, enquanto que a Holanda fez companhias por acções, que em alguns sítios continuam a funcionar. Essas companhias, aliás, tinham um forte capital de judeus portugueses. A lei que permitiu o estabelecimento desse capital judeu nunca foi feita em Portugal. Aqui, como o império era monopólio do Estado, e como tínhamos uma religião única que ia de par com o Estado, com uma polícia política e um tribunal persecutório que era a Igreja, isso tornava a Igreja completamente monopolista e anti-tolerante, em contraste total com o que se passava na Holanda. Repara, só quando os holandeses libertaram a região de Pernambuco é que se fizeram lá sinagogas. Mas esses judeus eram portugueses, mais portugueses que o Viriato, que nunca foi português na vida: foi um chefe celta que se levantou contra os romanos, e quem nos deu a língua que usamos foi Roma. Quem nos deixou a Lusitânia também foram os romanos. Basicamente, Viriato é um inimigo dos nossos pais.

Bem, mas a partir de 1821 os judeus puderam voltar a Portugal.

E o status-quo mudou por causa disso? Mantivemos sempre um Estado emparelhado com a Igreja. Nem os ingleses, em que o rei é por inerência o chefe da Igreja anglicana, fizeram isto. A Igreja anglicana inglesa não era um dos pilares do império britânico.

Não estás a subestimar um dos aspectos mais positivos do império português, que foi a grande miscigenação racial a que deu origem, essa sim, amplamente acarinhada pela Igreja?

São desculpas de um país pouco habitado.

Mas o Afonso de Albuquerque, na qualidade de primeiro vice-rei da Índia, fez passar uma lei sobre a prioridade dos casamentos mistos...

Pois com certeza, eles não levavam mulheres!

Queres tu dizer, prostitutas e criminosas, como os holandeses e os ingleses?

Não eram mulheres?

Então estás a dizer-me que a miscigenação portuguesa não é uma maravilhosa manifestação da nossa alma profunda?

Isso é um mito. Ouve lá. O Salazar, quando já a Europa inteira nos criticava por ainda termos um império colonial, foi buscar um brasileiro chamado Gilberto Freire, que achou que nós tínhamos inventado uma grande tolerância sexual, política e religiosa que seria o luso-tropicalismo. Claro que isto caiu como música celestial nos ouvidos do império. Mas é conversa, como é evidente.

Mas quando o Gilberto Freire fala do nosso entrosamento ecológico com o mundo que descobrimos, o encontro entre a razão e a natureza, não tem nem um bocadinho de razão?

Claro que não. Para haver encontro com a natureza era preciso que os portugueses tivessem explorado a selva, e nós limitámo-nos a andar de lado, como o caranguejo, sempre ao longo da costa. Entrámos muito pouco na selva. Toda a conversa piedosa da miscegenação é um bluff completo. Estou a basear-me em experiência própria. Visitei populações em Moçambique que nunca tinham ouvido falar português. A construção de um império multicultural de grande tolerância nas relações humanas é um bluff, que aliás foi desde logo denunciado como tal pelos dirigentes africanos, como o Amílcar Cabral.

E na vida quotidiana nas ex-colónias? Também não havia miscigenação?

Os assimilados foram sempre uma minoria. No liceu, eu tinha um colega indiano e um colega negro. E disse. Em termos económicos e sociais não havia mistura. Os negros não eram reconhecidos enquanto grupo social de pleno direito. A disseminação dessas ideias foi uma impostura política e económica descarada e bem calculada. Nunca houve uma sociedade permeável. Em Moçambique os europeus eram muito influenciados pelas políticas racistas da África do Sul, as classes dominantes eram extremamente ricas, e o racismo quotidiano era muito evidente.

Eu era miúda e lembro-me de Lisboa estar cheia de outdoors a dizer “Moçambique: Praias de Sol, Praias de Sonho”. A foto mostrava um grupo de pretos e brancos em amena confraternização. Estávamos a ser enganados?

Pois claro. Olha, eu ia à praia do Polana, que é muito pequenina e está toda fechada por redes por causa dos tubarões. E nunca, mas nunca me lembro de ter visto famílias negras a tomarem banho ao lado dos brancos, que se refugiavam num clube muito selecto.

Mas não podíamos ser tão pouco tolerantes do ponto de vista regioso como isso. Por exemplo, antes do Terramoto Lisboa etava cheia de protestantes ingleses que negociavam no ouro do Brasil. Até se disse que Deus tinha mandado aquele desastre para protestar contra a presença em Portugal de tantos protestantes...

Uma coisa é um comerciante que vem cá negociar, outra coisa é ser cidadão português. A constituição liberal de 1826, que se manteve válida atá ao 1910, dizia logo no primeiro artigo que a religião do país era católica e que os outros cultos só podiam ser mantidos privadamente. Podiam construir-se sinagogas e templos, mas só virados para dentro e murados. Só os católicos é que podiam ter igrejas grandes. No século XX, a sinagoga da Alexandre Herculano abriu as portas para a rua – mas atenção, atrás de um muro.

Ok, mas fazemos coisas bem feitas. Fizemos o 25 de Abril, por exemplo.

Essa revolução foi uma pseudo-revolução. Tanta gente com medo da tomada do poder pelo proletariado quando o proletariado não estava obviamente interessado em tomar o poder, tanto namoro com o modelo estalinista, tanto tempo perdido até se aceitar um modelo do tipo pluralista, e claro que tudo isto atrasou a nossa recondução à Europa democrática. Quando finalmente entramos na Europa e estão criadas as condições para se iniciar um verdadeiro desenvolvimento, estagna-se.

Ai, João. Portugal não tem nada de bom?

Tem a vista da minha janela. Portugal é um país defeituoso, cheio de arcaismos difíceis de superar porque somos um país inerte, sem nada de europeu, sem cultura europeia, sem desenvolvimento sustentável e coerente em termos do modelo económico que a Europa devia constituir. Estamos atrasados em relação ao que podíamos ter feito e seguramente reduzidos à lanterna vermelha dos 27 países europeus.

E o que vês na Universidade? Não te anima?

Temos uma Universidade anquilosada, tanto nas Humanidades como nas Ciências, que está muito longe do que eu vi nos Estados Unidos, em Itália, e na Alemanha. E no Brasil, também. Há uma grande degradação da cultura geral dos alunos. Há um desinteresse completo pelos instrumentos científicos e culturais do nosso tempo. Os meus alunos não sabem quem é o Stravinsky, não sabem quem é o Darwin, nunca encontro um tipo que tenha lido o Max Weber ou pelo menos As Farpas do Raul Brandão. A incultura tem vindo a crescer em Portugal, e isso ainda é mais grave quando se sente no campo universitário.

Bom, mas, pensando bem, o canibalismo tem vindo a diminuir. És um pessimista profissional?

Sou um dissidente e um heterodoxo, e gosto destas palavras porque a geração de 70 também foi clasificada assim. Faz-me pensar nos russos que tanta importancia tiveram no desmoronamento da horrível ditadura estalisnista. Sendo membro de uma família marrana, tive uma carreira muito pouco habitual: nasci em África, passei a infância em Joabesburgo, fui para Direito, em Direito descobri a democracia e militei na campanha do Humberto Delgado, vim para Lisboa estudar Filosofia com uma tese sobre o Holocausto e participei nas Greves estudantis de 1962. Fui aliciado várias vezes para entrar para o PCP, mas resisti. Sou um independente, sempre fui.

Até disseste que o Salazar não era fascista...

Nem tinha formação para isso. O Salazar foi um fruto provinciano e bacoco da I República, que durou de 1910 a 1926 e, em dezasseis anos, teve 47 governos. Foi esta instabilidade terrível, este caos absoluto, que permitiram ao Salazar fazer um percurso que ele nunca teria conseguido fazer de outra forma, e impor-nos o Estado Novo durante 48 anos. Mas também sou independente na maneira como estudo história. Interessam-me os símbolos, as representações psicológicas, os aleijões espirituais como o anti-semitismo, as referências populares como o Zé Povinho. Dei a minha aula das provas de agregação sobre o manguito. O que é que achas?