O ano de 2009 será o Ano Internacional da Biologia. A ideia partiu da International Organization for Sciences and Technology Education e mereceu de imediato o apoio da International Union of History and Philosophy of Science e da International Union of Biological Sciences. Acresce ainda o facto de que a UNESCO declarou também o ano de 2009 como o Ano Internacional da Astronomia, numa clara alusão à primeira utilização do telescópio para observações astronómicas por Galileu Galilei. Há, portanto, boas razões para o próximo ano ser um ano de festa. E não apenas para a comunidade científica mas também, e sobretudo, para a humanidade, aqui entendida num sentido mais lato.
Mas porquê 2009?
Bem, primeiro porque se comemora o bicentenário do nascimento de Charles Darwin e o 150.º aniversário da publicação da sua obra maior A Origem das Espécies, o tal livro de que grande parte de nós ouviu falar muito vagamente na escola. Sim, o tal que diz que as espécies sofrem transformações ao longo do tempo e que a alavanca dessas transformações é o mecanismo da selecção natural. Pois, o tal que provocou uma amálgama de reacções coléricas por parte do status quo vitoriano do século XIX. Neste sentido, e fica já dito, comemorar Darwin é um grande risco. Sobretudo porque é uma comemoração que se debruça sobre uma realidade que os anos fragmentaram, dispersaram e corromperam. Aliás, o risco tem a exacta medida dessa “realidade”.
Pois.
O que sabemos nós sobre Darwin e a sua obra? O que nos ensinam na escola? O que lemos nos escassos livros de divulgação científica dedicados à Biologia e que são colocados naquela prateleira entalada por dúzias de outras prateleiras com dezenas de livros de auto-ajuda e de parapsicologia e de astrologia e de romances de duvidosa qualidade literária? O que estudamos na faculdade? O que lemos nos jornais, o que vemos na televisão ou o que ouvimos na rádio?
Mais.
E quantos biólogos (sobretudo aqueles que escrevem, falam e ensinam evolução nas escolas e nas faculdades) e comentadores de assuntos de ciência (sejam eles jornalistas, pais, fazedores de opinião, políticos, técnicos com responsabilidade na concepção de programas educativos, etc.) é que já leram A Origem das Espécies (ou qualquer outro texto de Darwin ou de outro notável biólogo do século XIX) na sua versão original, do princípio ao fim? Este aspecto não é de todo retórico. É que a canonização das fontes secundárias, em detrimento das fontes primárias, sem qualquer filtro, sem qualquer análise crítica, tem como resultado que tudo aquilo que sabemos sobre Darwin e a sua obra é qualquer coisa muito próxima do “ouvi dizer que” ou então do “li algures que”.
Mas há mais.
Dobzhansky, um proeminente biólogo evolucionista do século XX, escreveu em 1973 que «nada em Biologia faz sentido excepto à luz da evolução». Se tomarmos esta premissa como verdadeira, e se tivermos em conta que no programa de Ciências Naturais do ensino básico e no programa de Biologia do ensino secundário, os temas da origem da vida e da evolução do homem são tratados de uma forma muito superficial, então facilmente podemos constatar que aquilo que os miúdos aprendem na escola não tem sentido nenhum. Mas esta falta de sentido vai mais fundo. Note-se as seguintes orientações que constam do programa de Biologia/Geologia do 11.º ano: «evitar o estudo pormenorizado das teorias evolucionistas»; «evitar a abordagem exaustiva dos argumentos que fundamentam a teoria evolucionista». Ou seja, há ainda quem tenha mesmo muito medo de Darwin. Que nada faz sentido em Biologia excepto à luz da evolução devia já estar entranhado no nosso corpo e bem juntinho ao nosso sistema de compreensão do mundo que nos rodeia, incluindo essa parte do mundo que somos nós próprios. Mas não está. E as razões são quase sempre extra-científicas (e, nalguns casos, anti-científicas). Aliás, como sempre foram.
Sem dúvida que 2009 vai ser uma festa em grande. Nesta ocasião, comemora-se o homem, a obra e o impacto da obra deste homem no modo de percepcionarmos o mundo. E esta distinção é perfeitamente adequada. Primeiro, porque Darwin, por si só, é uma personagem histórica a todos os títulos notável. Depois, a sua obra não se reduz à Origem das Espécies. Darwin escreveu belíssimos e influentes textos sobre geologia e zoologia. Finalmente, o impacto das suas ideias transformistas no modo de vermos o mundo foi brutal. Publicado a 24 de Novembro de 1859 e esgotado no mesmo dia, A Origem das Espécies afectou não apenas a estrutura do pensamento científico, mas também filosófico, antropológico, teológico e até económico. É claro que há outros “heróis” que a história fez o favor de menorizar. É o caso de Jean-Baptiste Monet, cavaleiro de Lamarck, frequentemente circunscrito pelos anais à teoria da herança dos caracteres adquiridos e aos pescoços das girafas, como se toda a linha de pensamento e todo o trabalho por ele desenvolvido se resumisse a isso mesmo. Por isso é completamente pertinente que se faça uma referência efusiva ao bicentenário da publicação da sua obra maior, Filosofia Natural.
Mas se 2009 é uma boa oportunidade para glorificarmos Charles Darwin como uma espécie de Newton da Biologia, dando espaço para uma viagem histórica sobre os aspectos mais significativos da sua vida e da sua obra, nós entendemos que é também uma boa oportunidade para irmos mais longe e, pelo menos, dar um aviso à navegação que estamos, actualmente, a entrar numa nova era pós-neodarwinista que começa já a desenhar uma estrutura de compreensão do mundo vivo muito diferente daquela que está canonizada. Neste domínio, o biólogo russo Constantin Merezhkowsky deu um contributo notável. Com a publicação de A Teoria dos Dois Plasmas, em 1909, Merezhkowsky introduz o conceito de simbiogénese, isto é, «a origem de organismos pela combinação ou associação de dois ou vários seres através de processos simbióticos», lançando assim a primeira pedra de toda uma escola de investigação e de pensamento que assenta num novo paradigma de evolução que se destaca de toda a concepção clássica de evolução dos organismos vivos.
François Jacob escreveu uma vez que «no final deste século XX deveria ser claro para todos que nenhum sistema explicará o mundo em todos os seus aspectos e todos os seus pormenores». No entanto, pese embora esta lucidez, a Biologia tem muito para nos ensinar sobre o mundo, incluindo essa parte do mundo que somos nós próprios. É precisamente neste sentido que iremos publicar aqui, a partir deste mês e durante todo o ano de 2009, uma série de entrevistas a biólogos bem como recensões de livros e textos de divulgação.
Mas porquê 2009?
Bem, primeiro porque se comemora o bicentenário do nascimento de Charles Darwin e o 150.º aniversário da publicação da sua obra maior A Origem das Espécies, o tal livro de que grande parte de nós ouviu falar muito vagamente na escola. Sim, o tal que diz que as espécies sofrem transformações ao longo do tempo e que a alavanca dessas transformações é o mecanismo da selecção natural. Pois, o tal que provocou uma amálgama de reacções coléricas por parte do status quo vitoriano do século XIX. Neste sentido, e fica já dito, comemorar Darwin é um grande risco. Sobretudo porque é uma comemoração que se debruça sobre uma realidade que os anos fragmentaram, dispersaram e corromperam. Aliás, o risco tem a exacta medida dessa “realidade”.
Pois.
O que sabemos nós sobre Darwin e a sua obra? O que nos ensinam na escola? O que lemos nos escassos livros de divulgação científica dedicados à Biologia e que são colocados naquela prateleira entalada por dúzias de outras prateleiras com dezenas de livros de auto-ajuda e de parapsicologia e de astrologia e de romances de duvidosa qualidade literária? O que estudamos na faculdade? O que lemos nos jornais, o que vemos na televisão ou o que ouvimos na rádio?
Mais.
E quantos biólogos (sobretudo aqueles que escrevem, falam e ensinam evolução nas escolas e nas faculdades) e comentadores de assuntos de ciência (sejam eles jornalistas, pais, fazedores de opinião, políticos, técnicos com responsabilidade na concepção de programas educativos, etc.) é que já leram A Origem das Espécies (ou qualquer outro texto de Darwin ou de outro notável biólogo do século XIX) na sua versão original, do princípio ao fim? Este aspecto não é de todo retórico. É que a canonização das fontes secundárias, em detrimento das fontes primárias, sem qualquer filtro, sem qualquer análise crítica, tem como resultado que tudo aquilo que sabemos sobre Darwin e a sua obra é qualquer coisa muito próxima do “ouvi dizer que” ou então do “li algures que”.
Mas há mais.
Dobzhansky, um proeminente biólogo evolucionista do século XX, escreveu em 1973 que «nada em Biologia faz sentido excepto à luz da evolução». Se tomarmos esta premissa como verdadeira, e se tivermos em conta que no programa de Ciências Naturais do ensino básico e no programa de Biologia do ensino secundário, os temas da origem da vida e da evolução do homem são tratados de uma forma muito superficial, então facilmente podemos constatar que aquilo que os miúdos aprendem na escola não tem sentido nenhum. Mas esta falta de sentido vai mais fundo. Note-se as seguintes orientações que constam do programa de Biologia/Geologia do 11.º ano: «evitar o estudo pormenorizado das teorias evolucionistas»; «evitar a abordagem exaustiva dos argumentos que fundamentam a teoria evolucionista». Ou seja, há ainda quem tenha mesmo muito medo de Darwin. Que nada faz sentido em Biologia excepto à luz da evolução devia já estar entranhado no nosso corpo e bem juntinho ao nosso sistema de compreensão do mundo que nos rodeia, incluindo essa parte do mundo que somos nós próprios. Mas não está. E as razões são quase sempre extra-científicas (e, nalguns casos, anti-científicas). Aliás, como sempre foram.
Sem dúvida que 2009 vai ser uma festa em grande. Nesta ocasião, comemora-se o homem, a obra e o impacto da obra deste homem no modo de percepcionarmos o mundo. E esta distinção é perfeitamente adequada. Primeiro, porque Darwin, por si só, é uma personagem histórica a todos os títulos notável. Depois, a sua obra não se reduz à Origem das Espécies. Darwin escreveu belíssimos e influentes textos sobre geologia e zoologia. Finalmente, o impacto das suas ideias transformistas no modo de vermos o mundo foi brutal. Publicado a 24 de Novembro de 1859 e esgotado no mesmo dia, A Origem das Espécies afectou não apenas a estrutura do pensamento científico, mas também filosófico, antropológico, teológico e até económico. É claro que há outros “heróis” que a história fez o favor de menorizar. É o caso de Jean-Baptiste Monet, cavaleiro de Lamarck, frequentemente circunscrito pelos anais à teoria da herança dos caracteres adquiridos e aos pescoços das girafas, como se toda a linha de pensamento e todo o trabalho por ele desenvolvido se resumisse a isso mesmo. Por isso é completamente pertinente que se faça uma referência efusiva ao bicentenário da publicação da sua obra maior, Filosofia Natural.
Mas se 2009 é uma boa oportunidade para glorificarmos Charles Darwin como uma espécie de Newton da Biologia, dando espaço para uma viagem histórica sobre os aspectos mais significativos da sua vida e da sua obra, nós entendemos que é também uma boa oportunidade para irmos mais longe e, pelo menos, dar um aviso à navegação que estamos, actualmente, a entrar numa nova era pós-neodarwinista que começa já a desenhar uma estrutura de compreensão do mundo vivo muito diferente daquela que está canonizada. Neste domínio, o biólogo russo Constantin Merezhkowsky deu um contributo notável. Com a publicação de A Teoria dos Dois Plasmas, em 1909, Merezhkowsky introduz o conceito de simbiogénese, isto é, «a origem de organismos pela combinação ou associação de dois ou vários seres através de processos simbióticos», lançando assim a primeira pedra de toda uma escola de investigação e de pensamento que assenta num novo paradigma de evolução que se destaca de toda a concepção clássica de evolução dos organismos vivos.
François Jacob escreveu uma vez que «no final deste século XX deveria ser claro para todos que nenhum sistema explicará o mundo em todos os seus aspectos e todos os seus pormenores». No entanto, pese embora esta lucidez, a Biologia tem muito para nos ensinar sobre o mundo, incluindo essa parte do mundo que somos nós próprios. É precisamente neste sentido que iremos publicar aqui, a partir deste mês e durante todo o ano de 2009, uma série de entrevistas a biólogos bem como recensões de livros e textos de divulgação.