terça-feira, 30 de outubro de 2007

OPINIÃO: Ainda sobre James Watson

QUANDO OS BONS HOMENS NÃO SÃO HOMENS BONS

O pai dos meus filhos é um dos frutos típicos do sonho americano: a família veio de uma aldeia muito pobre no Sul da Itália, todos falavam em dialecto, atravessaram a Grande Depressão de queixo erguido e o melhor que puderam, quando o Dick nasceu estava o pai em manobras no Pacífico, no último ano da II Guerra. O que ganharam e cresceram deu-lhes uma casa de habitação, outra casa de férias na Florida, dois carros, e um filho que é professor universitário num dos Colleges mais finos e famosos do país, o género de sítio onde estudam os Grimaldi e pessoas dessas. O Dick foi o primeiro membro da familia a abandonar o ghetto italiano de Utica para ir fazer o doutoramento, e foi directamente para Harvard estudar com nem mais nem menos que o James Watson.
Perguntaram-lhe os familiares, completamente apanhados de surpresa, Quem é o James Watson?
Respondeu ele, do alto do seu diploma do College: Apenas o miúdo que, com vinte e poucos anos, entrou na linha de montagem que leva ao Nobel por ter descoberto, juntamento com James Crick, que a estrutura do código genético, a molécula gigantesca designada como DNA em que estão todos os pares de bases da nossa individualidade, se organiza como uma colossal hélice dupla, com pontes estendidas de braço a lado a intervalos regulares.
Como é evidente, James Watson era o grande heroi intelectual do aluninho italiano que estava a sair do perímetro familiar pela primeira vez. O encontro deu-se poucos dias depois da sua chegada a Harvard, estava Watson a entrevistar um por um os novos candidatos ao doutoramento. Quando chegou a vez do Dick, olhou para o papel e franziu as sobrancelhas.
“Dick Poccia? Agora já deixam pessoas com nomes italianos entrar para Harvard?”
E foi tudo.
A verdade é que o Dick, que vinha do ghetto com o mesmo sotaque de filme da Mafia com que toda a gente ali fala, a primeira coisa que fez foi tratar de perder o sotaque o mais depressa que pode. Eu, que o conheci uns vinte e tal anos depois, só soube que ele alguma vez o tivera porque ele me disse. E mais me disse que, claro, isso fora sentido como uma rejeição e um afastamento por toda a família.
Este mesmo James Watson é o senhor que deu que falar nas últimas semanas porque proferiu tantas observações racistas nas entrevistas de lançamento do seu último livro biográfico, na sequência de muitas outras ao longo dos anos contra homosexuais, obesos e judeus, entre outros, que o Science Museum, em Londres, cancelou a conferência prevista, e o laboratório americano de Cold Spring Harbor, que dirigiu até 1994, prescindiu dos seus serviços tutelares (a Fundação Champalimaud, onde Watson preside ao Conselho Científico, preferiu até hoje não fazer comentários). Em grande medida, esta reacção de choque tem a ver com a rapidez, a frontalidade e a noção de certo e errado que permeiam a sociedade de hoje em nítido contraste com a forma como circulavam notícias e comentários nos anos 70, quando o Dick foi para Harvard. Também tem certamente a ver com a nossa percepção instintiva de que, quando um homem de ciência fala, está a fazê-lo em termos científicos – e, honra lhe seja, Watson sempre deixou claro que falava em termos pessoais. Mas é evidente que, para todos os que descobrem só hoje esta faceta insuportável do eterno enfant térrible da biologia celular, o que é realmente chocante é que um grande homem não seja um homem bom. Watson é um cientista de cinco estrelas, mas, como ser humano, já era uma peste nos anos 50, quando chegou a Cambridge para o doutoramento que ia levá-lo à glória. Está no seu direito de pensar o que quiser, e até, se isso lhe dá prazer, de usar a sua visibilidade para dizer ao mundo inteiro o que pensa. Não pode é não temer consequências. E, no caso dele, estas já eram devidas há muito tempo. É curioso, é inesperado, mas às vezes ainda me sinto orgulhosa da sociedade a que pertenço.