A FÉ E O MUNDO
Lecciono aos finalistas de Biologia uma cadeira de História do Pensamento Biológico. À medida que os anos passam, dá ideia de que os portugueses são cada vez menos crentes, e ainda menos praticantes: de uma forma que se generaliza gradualmente, os meus alunos desconhecem tanto o Velho como o Novo Testamento. E isto torna particularmente complicado o ensino de qualquer temática de foro histórico, porque a fé cristã fez parte integrante da organização do nosso mundo até à segunda metade do século XIX, complementada pelas tradições judaica e islâmica que nos acompanharam no caminho. Aparentemente, a única forma de colmatar esta lacuna complicada seria regredir à velha obrigatoriedade da frequência de Moral e Religião, onde ao menos se aprendiam uns vislumbres. O problema é que estas aulas são constituídas por proselitismo e não por aprendizagem de factos, o que torna obrigatório manterem-se estritamente opcionais. Mas, se as bases mais elementares da religião que modelou o Ocidente já não se aprendem em casa nem por simples contágio social, a formação dos cidadãos ocidentais nunca estará completa se elas não passarem a ensinar-se na escola, por forma a não acabarmos por perder completamente o Norte quanto tentamos seguir o percurso que nos trouxe até aqui. Talvez criar, pelo menos no secundário, assim como há Filosofia e Introdução à Política, uma cadeira nova que se chamaria qualquer coisa como, simplesmente, Religião – para apresentação de factos,com exclusão rigorosa de comentários? A fé pode já não querer diser grande coisa no nosso mundo, mas o trajecto que esse mundo seguiu depende em grande parte dela, e, sem ela, não se entende com a devida clareza. E continua a querer dizer muito no mundo dos outros, remetendo-nos por analogia para o nosso, como no caso da fé islâmica. Uma cadeira de Velho e Novo Testamento, reformas, contra-reformas, hexegeses que marcaram a Europa, guerras e torturas e perseguições e criações de padrões populacionais ao longo do tempo. Pensem nisso. Eu apenas posso atestar, como docente universitária, que o nosso entendimento do mundo está a ficar cada vez mais deficiente. Agradeço muitos comentários, porque sei que isto não é nada simples.