«(...) o que se encontra neste livro não é já, simplesmente, o estudo duma região anatómica, como haviam feito Dürer, Miguel Ângelo e, sobretudo, Leonardo da Vinci. É a globalidade da arquitectura do corpo humano ligado à vida quotidiana. Nada até aí atingira a nobreza e a precisão daquelas estampas. Aquele esqueleto, por exemplo, de pé, de perfil, um tanto curvado, que se apoia negligente numa espécie de grande mesa colocada à direita do desenho. Ergue-se sobre o fundo de paisagem em miniatura, essa amálgama de palácios, de ruínas, de colinas salpicadas de ávores anãs, que balizava as perspectivas renascentistas. O que dá a cada um dos ossos relevo e nitidez é uma luz, bastante suave, que dimana do alto, à direita, de forma que a sombra se esboça por detrás do crânio e das vértebras. O esqueleto tem uma postura um tudo-nada mole, como se o artista tivesse querido dar uma impressão de indolência e de recolhimento. Indolência, devido à posição ligeiramente desengonçada: o peso do esqueleto recai sobre a perna direita, que se mantém estendida, enquanto o joelho esquerdo se flecte apenas o suficiente para dar às tíbias a possibilidade de se cruzarem, pé esquerdo somente apoiado na ponta. Mas impressão de recolhimento também, porque o braço esquerdo, de cotovelo na mesa, se dobra em ângulo agudo, de forma que a cabeça se apoia nas costas da mão, na atitude do pensador. Mas o que atrai a atenção e dá intensidade à gravura é a face voltada para um outro crânio, que a mão direita segura sobre a mesa. Bem abertas, as órbitas do esqueleto parecem perscrutar essoutra face. Como se o homem se quisesse estudar a si mesmo. (...)»
(Fançois Jacob, in O Jogo dos Possíveis - Ensaio sobre a diversidade do mundo vivo, 1981)
(Fançois Jacob, in O Jogo dos Possíveis - Ensaio sobre a diversidade do mundo vivo, 1981)