O livro que hoje lançamos contém o essencial da matéria do curso de História da Farmácia, que ensino na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa desde a década de 1980.
Neste sentido, corresponde ao que foi o meu principal contributo para o ensino farmacêutico e é, para mim, particularmente importante que ele veja a luz do dia antes da minha reforma, que estará para muito breve, por razões que serão evidentes para quem hoje me vê nesta cadeira.
Ao mesmo tempo, este livro teve uma longa gestação, que acompanhou, de forma muito irregular, o meu percurso como docente da Faculdade de Farmácia.
Por todas estas razões, entendi que seria adequado falar-vos um pouco sobre alguns passos mais importantes deste percurso, que explicam as principais características deste livro.
Há alguns anos, no Brasil, quando esperava por um transporte, adquiri um opúsculo de anedotas étnicas - portugueses, chineses, mulatos, judeus, etc. Apesar do sentido racista e xenófobo da maior parte, algumas das anedotas eram mesmo muito interessantes.
Uma delas, em particular, dizia-me muito sobre a minha vida: Um português entra num elevador e diz que quer ir para o quarto andar. O ascensorista observa que o prédio só tem três andares, ao que o português responde: “Não faz mal, eu já me tinha enganado no número da porta”.
O número da porta em que entrei e muito do percurso que se seguiu, deveu-se ao jovem que se vê nesta fotografia [cf. Fig. 2], de punho erguido e megafone ao colo, à frente da Catedral de Lille, em 1977.
Pouco após a sua entrada na Universidade, ele acelerou esse percurso e rapidamente se tornou ateu e marxista. Por influência dum colega e amigo, o Artur Borges Nunes, o único que soube responder de forma satisfatória às questões que levantou, organizou-se num pequeno grupo de militantes clandestinos, que se consideravam os verdadeiros continuadores da 4.ª Internacional.
No essencial, do ponto de vista filosófico e dos objetivos, ele ainda hoje se mantém um materialista dialético e anseia por uma sociedade sem classes. A única - e grande - diferença é que agora tem muitas dúvidas e incertezas, sobre a forma de a atingir.
A escolha do curso de farmácia nunca foi o resultado de uma vocação, mas sim da conjunção de antigas pressões familiares e do convencimento - possivelmente errado - de que nunca seria realizador de cinema ou um bom fotógrafo.
De qualquer forma, no primeiro período em que a frequentou, a faculdade revelou-se muito mais uma escola de ativismo político-sindical e de descoberta do outro sexo, do que de aprendizagem de ciências farmacêuticas.
Em 1974, quando se dá a revolução do 25 de abril, ele decidiu que havia coisas mais interessantes e importantes para fazer que estudar farmácia. Foi então que suspendeu os estudos e enveredou pela dedicação exclusiva ao que Victor Serge chamava ser um revolucionário profissional.
Durante grande parte dos quatro anos seguintes, saiu de casa dos pais e a sua sobrevivência foi assegurada pelo Workers Revolutionary Party (WRP) da Grã-Bretanha, respondendo diretamente perante Gerry Healy (1913-1989). Gerry viria a ser expulso do WRP em 1985, acusado de assédio sexual a jovens camaradas, mas isso aconteceu vários anos depois de o jovem da fotografia abandonar o partido. Nesta época Gerry Healy era o não questionado e temido secretário-geral do partido e trazia consigo a autoridade e o prestígio de quatro décadas de militância política.
O jovem do punho erguido teve a sorte de cair num movimento que valorizava e cultivava a dimensão teórica do marxismo, contrariamente à corrente dominante no movimento operário em Portugal, que tendia a desconfiar da teoria, como um desvio intelectual, anti-operário e pequeno-burguês. O seu tempo no WRP incluiu, entre outras coisas, passagens pelo denominado «College of Marxist Education», nos Midlands, assim como pela sede do partido e pela redação do diário Newsline, onde, entre outras coisas, adquiriu um grande respeito e curiosidade pelas possibilidades de aplicação da tecnologia.
Depois de 1978, ano em que decidiu que a vida de revolucionário profissional - sublinhando o conflito e não apenas a unidade entre contrários - não era a adequada para o seu feitio e maneira de ser, tinha adquirido e assimilado suficientes interesses histórico-sociais e conhecimentos sobre o materialismo histórico e a filosofia marxista, para poder ter a veleidade de se dedicar à história. Se não fosse essa bagagem não sei qual o caminho pelo qual teria seguido a viagem da vida, mas certamente não seria aquele pelo qual efetivamente seguiu.
Isso aconteceu depois de voltar a estudar na Faculdade de Farmácia para concluir a licenciatura, depois de ensinar no ensino secundário e após uma curta passagem de três anos pelo Laboratório de Química Orgânica, sob a direção do Prof. José do Nascimento Júnior, uma figura tão interessante, cativante e generosa como caótica, que apenas esboçou pequenas objeções à sua infidelidade e mudança de interesses académicos.
Figura 4: 1982-1987.
Em fevereiro de 1987 - quando em Portugal ainda não existiam mestrados em história da ciência - realizou Provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, como resultado do seu primeiro trabalho de fôlego em história da farmácia, que seria publicado um quarto de século depois pela Caleidoscópio, com o título «A Água de Inglaterra: Paludismo e Terapêutica em Portugal no século XVIII» (2012).
O doutoramento foi realizado em 1991, com a tese «Inovação Técnica e Sociedade na Farmácia da Lisboa Setecentista», publicada em 2007 pela Gulbenkian e pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, com o título «Droguistas, boticários e segredistas. Ciência e Sociedade na Produção de Medicamentos na Lisboa de Setecentos».
Seguiu-se um pós-doutoramento em Londres, no Wellcome Institute for the History of Medicine em 1994-95.
Anos depois teve a honra de coordenar as Comemorações do Centenário da Universidade de Lisboa, enquanto Pró-Reitor na Equipa Reitoral de António Sampaio da Nóvoa (2006-2009 e 2010-2011) e de dirigir o Museu Nacional de História Natural e da Ciência (2012-2019).
Principalmente nestas últimas funções teve a oportunidade de aplicar - em termos de organização e mobilização de massas - muito do que aprendera nos anos de revolucionário profissional. E foi com grande prazer que retribuiu essa aprendizagem com a organização de uma exposição sobre «A Revolução Russa e a Cultura Científica em Portugal no Século XX», no momento do centenário da Revolução de Outubro.
A saga que levou a este livro foi iniciada no ano letivo de 1987/88, quando comecei a ser o responsável pela regência da disciplina de História da Farmácia, na Faculdade de Farmácia..
A orientação programática dada a este ensino procurou assentar numa visão não limitada à história da profissão farmacêutica, que partisse da história mais geral do pensamento científico e médico-farmacêutico e abordasse várias dimensões, como a a filosófica, a religiosa, a social, a económica e a política.
Da mesma forma, procurámos que o curso não se limitasse a uma descrição de ideias e factos e procurasse problematizar a interação da história dos medicamentos com as diferentes dimensões das sociedades humanas.
Esta orientação, que não encontrámos na maior parte das obras disponíveis - que eram então muito escassas nas nossas bibliotecas, aconselhou desde muito cedo à redação de um livro de texto próprio.
Infelizmente, embora fossem produzidos alguns materiais e partes deste texto tivessem várias incarnações, algumas mesmo com ampla difusão na Internet - por exemplo, no Brasil, com o título «A Farmácia e a História», este livro nunca chegou a ser concluído. Apenas os capítulo sobre a farmácia em Portugal e sobre a farmácia no Renascimento foram objeto de publicação.
A conclusão do livro apenas teve lugar entre 2019 e 2022, depois de regressar dos Museus da Universidade de Lisboa para a Faculdade de Farmácia. Tal só foi possível com a sabática de reinserção que a Faculdade me concedeu no ano letivo de 2019-2020. O início da pandemia e os posteriores problemas de mobilidade criaram alguma dificuldade de acesso aos meus livros, a maior parte dos quais ainda se encontram num segundo andar - sem elevador - do Instituto Rocha Cabral, onde atualmente não consigo ir, mas creio que essa dificuldade acabou por ser ultrapassada no essencial e salvou este livro de alguma tentação de erudição, acabando por viver muito da memória das aulas, baseada na organização mais coloquial dada aos seus sumários e diapositivos.
Não vos vou maçar mais com considerações sobre o livro.
Quero apenas dizer-vos que continuo muito contente por me ter enganado no número da porta que me trouxe aqui, até à edição e lançamento de «Homens e Medicamentos» e até ao pé de vocês.
Obrigado.
José Pedro Sousa Dias