domingo, 28 de janeiro de 2007

ENTREVISTA: Carlos Pimenta

CARLOS PIMENTA
Como quem não baixa os braços

Então vamos lá ver, por que é que o mar da Costa da Caparica decidiu este ano dar cabo da praia? Por que é que desmoronam as falésias no Algarve? O que é que julgam que vai acontecer a prazo na Ria de Aveiro? Alguma vez se questionaram sobre o que vos obriga realmente a passarem tanto tempo no trânsito? Têm a certeza de que escolheram bem o vosso automóvel particular? Pensavam que ter ar condicionado em casa só era mau por causa da factura da electricidade? Têm a certeza de que deveriam mesmo ser os camiões a pejar-nos as autoestradas de cortejos de mercadorias, se ali mesmo ao lado passa uma linha de comboio? O que é que vos impede de comprarem lâmpadas amigas do ambiente de cada vez que vão ao Aki? Já tomaram consciência de que o aquecimento global é mesmo um problema real e terrível, a dois passos de se tornar irreparável? Se tudo isto já se sabe desde 1991, por que é que terá levado tanto tempo a calar-nos fundo na consciência? Pode não parecer à primeira vista, mas todas estas questões estão intrinsecamente ligadas. Em Portugal, um homem que batalha constantemente na cena internacional pela devolução às sociedades humanas de um planeta feliz e habitável sabe orientar-nos no mapa da nossa própria degradação melhor que qualquer outro: Carlos Pimenta, 51 anos, três filhos, formado em Engenharia Electrotécnica e munido de Pós-Graduaçoes em Informática feitas na Suíça, em França e na Bélgica, fala-nos com a energia contagiante de quem não baixa os braços e demonstra-nos por a mais b que, se o drama da Caparica não existisse, isso significaria que estávamos todos a viver melhor. É com um conhecimento de causa enciclopédica que nos explica porquê.

À hora marcada em ponto, nem mais nem menos um minuto, aparece à porta da sala com o seu tradicional sorriso de miúdo, rasgado de orelha a orelha. Aqui, no meio de computadores topo da gama e informação ambiental de todo o mundo nas paredes, que ninguém pense sequer em fumar. Quando está em Lisboa, é neste quarto andar das Avenidas Novas que está o grosso do investimento do Carlos: no Centro de Estudos de Economia, Energia, Transportes e Ambiente, uma Organização Não-Governamental com cerca de vinte anos e cerca de vinte pessoas a trabalhar aqui, quase todas oriundas da Universidade Nova de Lisboa, unidas pela primeira vez nos anos 80 quando foi preciso lutar contra a entrada da energia nuclear em Portugal. Agora, militam pela promoção dos recursos renováveis e da eficiência energética. Como do costume, o Carlos passa por aqui, assoberbado de coisas importantes para fazer, dessas coisas das quais vai depender inteiramente o futuro dos nossos filhos.
Estou com projectos a mais em relação àquilo que posso fazer, comenta ele.

Quando falas de energias renováveis que toda a gente em Portugal pode usar se quiser, estás a pensar exactamente em quê?

Em coisas tão simples como instalar em casas paredes que absorvem o calor durante o dia e o libertam à noite, ou em forros de cortiça. Ou no biogaz dos aterros sanitários, ou nos sitemas fotovoltaicos. Nas condutas de água de rega podem instalar-se micro-turbinas dentro dos canos. É ridículo, o que nós não fazemos. Desperdiçamos tudo, até a energia solar, até a matéria orgânica que, à falta de outra iniciativa, é atirada para as ribeiras em quantidades gigantescas, e ainda tem o problema de poluir a água. Temos complexo de país rico, e ainda por cima nenhum país rico faz isto – e, por isso mesmo, é que é rico.

Isso implicaria vontade política e organização nacional. Mas nós, individualmente, podemos contribuir de alguma forma para que se poupe mais energia em Portugal?

Claro que pudemos! Sessenta por cento da electricidade consumida no país é desperdiçada nos edifícios. Uma casa de habituação não precisa de ter ar condicionado. Se estiver bem isolada, não precisa mesmo. Sabes que cinquenta por cento da energia que se consome se perde através do telhado? Basta um bom isolamento do telhado, que até podemos fazer por nós próprios com rolhas usadas, e isso acaba-se. Depois é importante instalar janelas de vidro duplo com vácuo no meio. Digo-te uma coisa: este escritório não tem aquecimento nem ventilação. E estamos bem, não estamos? Além disso, podemos sempre instalar paineis solares para o aquecimento da água, com a quantidade de horas de sol que cá temos: fazes um investimento inicial de 3500 a 5000 Euros, que podes pagar em sete anos, o teu duche passa a ser de graça e reduzes substancialmente as despesas para a aquecer a água nas máquinas. E isto dura-te vinte ou 25 anos. Estás a ver, nem precisas de querer salvar o planeta para fazeres estas opções: basta-te quereres reduzir as tuas despesas energéticas.

Todas essas iniciativas precisam de ter benefícios fiscais para atraírem verdadeiramente as pessoas.

Pois claro, e nesse ponto a nossa legislação fiscal só mete água. Repara neste disparate. Compras uma casa. Queres isolá-la toda muito bem? Pagas 21% de IVA. Queres instalar uma boa caldeira de gaz natural? Pagas 12% de IVA. Continuas a gastar recursos e a contaminar o ambiente, e limitas-te a eleftrificar tudo? Pois bem, só pagas 5% de IVA! O melhor sistema de consumo é o mais penalizado. Faz algum sentido? Premeia-se a forma mais parva de aquecer ou refrescar a casa, que tem que ser queimada termicamente no Carregado ou tirada do carvão em Sines, depois perde 11% nas linhas eléctricas, perde ainda mais com os equipamentos de conversão da electricidade, e acaba por só ter 25 ou 20% da eficiência original. São grandes erros, que desmotivam as pessoas, claro.

Então fala-me de outras coisas simples que podemos fazer.

Podemos arrancar todas as lâmpadas convencionais, que só dão vinte por cento de luz e os restantes oitenta por cento são calor. E as de halogéneo ainda são piores. Em vez disso, instalamos lâmpadas económicas, daquelas fluorescentes pequeninas que há no Aki, no Jumbo, em qualquer grande superfície. Estas lâmpadas têm cinco vezes mais potência que as outras fontes de luz, e agora apareceram outras que nem sequer têm gasto de energia. Não é melhor para toda a gente?

Também já te ouvi falar dos frigoríficos.

Há frigoríficos em categorias que vão do A+ ao E, e hoje em dia a menção no rótulo é obrigatória. Os A+ fazem exactamente o mesmo que os outros, mas com muitissimo menos consumo energético. São ligeiramente mais caros, mas, com o tempo, até isso compensa.

E os plasmas? Ainda não pecebi se são bons ou maus.

Se não leres os papeis, ainda te arriscas a descobrir que tens em casa um bicho que te consome uma energia doida em cada hora que está ligado. Mas há outros que não consomem nada. E nós nunca devemos esquecer-nos de que vamos comprar o equipamento uma vez, mas a seguir vamos viver com ele durante anos e anos.

Também passamos pelo mesmo com os automóveis.

Podemos sempre comprar um Smart. Ou então um híbrido, que é a melhor solução. Arranca-se com o motor eléctrico, e basta um sinal vermelho para o motor se desligar. Um motor normal está sempre a funcionar, mas estes só funcionam quando é mesmo preciso. Também se desligam nas descidas. Mesmo que não estejas a querer evitar o aquecimento global, sentes os resultados na carteira. É de tal maneira que as grandes empresas que não quiseram saber dos híbridos, como a Ford ou a General Motors, hoje estão falidas; enquanto que a Toyota, que investiu nisto a fundo, é a marca com maiores vendas e tem toda a gente na lista de espera para comprar um híbrido.

Qual foi o truque?

Aquela gente percebeu antes dos outros que um condutor quer é ir de uma lado para o outro com rapidez e conforto. Coisa que nós, em Portugal, temos imensa dificuldade em conseguir. Já viste bem que engarrafado que está este país? Isso acontece porque as nossas necessidades são fundamentalmente de energia útil, mas a classe política responde ou com infra-estruturas ou com energia primária.

Podes dar um exemplo?

Então, andam a cobrir o país de auto-estradas todas paralelas umas às outras, em vez de darem prioridade ao comboio e ao metro, por exemplo. Já vamos em cinco auto-estradas paralelas e oitenta por cento são ao longo e todo o litoral, e estamos a falar numa faixa que não tem mais de cinquenta quilómetros de largura entre Setúbal e Braga. Vamos acabar por ter seis autoestradas paralelas entre Lisboa e Cascais. Hoje, tu chegas à Figueira da Foz por três autoestradas, a Aveiro por duas, à Guarda por outras duas... e não se investe no desenvolvimento do combio! Alguma coisa está muito mal no sistema se a forma mais rápida e cómoda de chegar de Lisboa ao Porto é o automóvel particular, incluindo as portagens. É um absurdo. A economia individual é a deseconomia do país. Se as pessoas tivessem metro no aeroporto, nas estações de comboio, a fazer ligações para as periferias, não precisavam de estar horas dentro dos autocarros no meio do trânsito. Muita gente, nestas circunstâncias, desiste dos transportes públicos e mete-se antes no seu próprio automóvel, que sempre está mais à vontade; e daí resulta este efeito patético de termos um país sobreindividado com a compra de automóveis. Mas repara, alguém chega ao aeroporto em Londres e gasta uma fortuna a meter-se num taxi que vai estar horas e horas num engarrafamento? Claro que não. Vai tudo para o centro de metro, porque a estação está logo ali. Entre nós, até as mercadorias são obrigadas a sair do aeroporto de carro! Pode ser. Sabes que temos mais camiões a transportar mercadorias nas nossas estradas do que os próprios Estados Unidos? É suicida. O nosso sistema de deslocações é suicida. Parece que os governos portugueses não conseguem gerir sistemas grandes e complexos. Deixam o caminho de ferro ao abandono a acumular centenas de milhões de Euros em dívidas, descuram os portos e aeroportos, e apresentam uma oferta péssima à população.

Também não temos comboio para atravessar a ponte Vasco da Gama, que já foi construída quando todas essas coisas estavam mais que estudadas.

Bem essa foi uma daquelas guerras que eu perdi e não posso perdoar a mim próprio. Fazer a ponte naquele sítio, antes de mais nada, implicou a destruição dos soberbos terrenos agrícolas do Montijo e de Alcochete. Foi dar carne do lombo à construção civil, enquanto que, no Barreiro, temos centenas de hectares contaminados mas que fazem parte de uma frente de rio magnífica, com uma vista linda para Lisboa. Ainda por cima, a Vasco da Gama, feita de raiz recentemente, não tem comboio; e, na 25 de Abril, só devia passar o metro. Não pode lá passar um TGV, por exemplo. Mas isso seria possível se se tivesse feito a tal ponte no Barreiro. Ficavam todas as linhas ligadas, aéreas e subterrâneas, o metro juntava-se ao comboio, desapareciam as barreiras físicas entre o Norte e o Sul, era perfeito para os nossos problemas de mobilidade. Além de que se poderia ter construído uma cidade fantástica, aberta para a margem, onde o terreno não sustenta agricultura, em vez de encher de caixotes de habitação os solos magníficos onde desagua a Vasco da Gama. Resultado: Portugal tem um dos PIBs mais baixos da União Europeia e está entre os cinco países com mais automóveis particulares por habitante! Isto, além de afectar a qualidade de vida das pessoas, encharca o ambiente em dióxido de Carbono. Sabes que Portugal está completamente em falta em relação aos acordos de Kyoto? Ninguém gosta de dizer isto, mas, em termos de impacto global do nosso comportamento pessoal, estamos a portar-nos tão mal como os americanos. O ar da Avenida da Liberdade, apesar do vento marítimo que vem da Serra de Sintra, é o mais poluído da Europa!

Então vamos já ao que aqui nos trouxe: tu achas que é por causa do aquecimento global que o nível do mar está a subir e a Caparica e o Algarve estão a desaparecer?

E isso também vai acontecer na Ria de Aveiro. Em relação à Caparica, que é neste momento o exemplo mais dramático deas consequências de má gestão humana da paisagem e do ambiente, nunca se deveria ter destruído o banco de areia que, até há cerca de trinta, quarenta anos, sempre ligou o Bugio à Cova do Vapor. Fazia-se aquele caminho todo a pé, lembras-te? Destruiu-se o equilíbrio das areias, que costumavam ser empurradas todos os anos para aquela zona. Por outro lado, a construção mesmo em cima das arrribas fez aumentar dramaticamente o nível de erosão. E, por cima de isto tudo, de facto, temos a subida global do nível do mar por causa de todo o gelo que está a derreter nos pólos, em consequência do aquecimento da atmosfera causada por acumulação de dióxido de Carbono libertado pela actividade humana.

Essa parte, claro, não afecta só a Caparica.

Todos sabemos que isto está hoje em curso em todo o planeta, e que está a ser terrivelmente rápido. Tu vais à Gronelândia e vês a linha de recessão de glaciares, e olha que não são centímetros, são metros e metros de gelo que desaparecem todos os anos. Os ursos polares, que não tinham quaisquer problemas de sobrevivência, estão hoje ameaçados de extinção porque as placas de gelo no Ártico estão a ficar tão finas que se partem quando eles tentam subir para cima delas – e, depois de horas e horas sem conseguirem pisar terra firme, morrem afogados. Se isto continuar a evoluir no mesmo sentido, se não fizermos nada, vamos ter consequências terríveis ainda dentro da nossa expectativa de vida, dentro de vinte ou 25 anos. E o que me desespera mais é que já desde 1991 que se sabe isto tudo! Nessa altura o Al Gore já tinha exactamente os mesmos slides que agora mostra no filme. A primeira reacção política internacional foi que não havia a certeza de que isto estava a ser causado pelo homem, depois que não se tinha a certeza que era do dióxido de Carbono, depois que não podiam por-se travões aos países em desenvolvimento como a Índia ou a China... É exasperante. Espero que, em Portugal, toda a gente tenha finalmente acordado com esta tragédia da nossa costa.