quarta-feira, 15 de outubro de 2008

AGENDA: Ciclo de Conferências "Madrid, Paris, Berlim, São Petersburbo, o Mundo"

Está a decorrer, até ao fim deste ano, na Fundação Calouste Gulbenkian, Auditório 3, às 3ªs e sábados às 18 horas, o Ciclo de Conferências "Madrid, Paris, Berlim, São Petersburgo,o Mundo" (do famoso alexandrino de Cesário Verde), em que personalidades relevantes da cultura nacional e internacional reflectem sobre tópicos prementes do pensamento contemporâneo.
Publica-se, seguidamente, na ítegra, a conferência proferida a 11 de Outubro por Clara Pinto Correia, membro do CEHFC.





VIVER PARA SEMPRE:
Uma história breve dos “Milagres da Medicina”


Tomei a decisão de partilhar convosco este tópico devido a um pequeno espectáculo, a todos os títulos absurdo, e outro tanto alarmante e outro tanto deprimente, que me aconteceu presenciar, absolutamente por acaso, algures em Julho, quando estava quase a sair de casa para ir distribuir uns exames sérios, num curso de Biologia sério.
Infelizmente, coisas como essa que eu vi, hoje em dia, tornaram-se de tal forma lugares-comuns que já ninguém dá por elas. Mas é importante que dê. E é urgente que as elites internacionais se compenetrem bem da gravidade de se contarem histórias destas, aparentemente com o selo de toda a credibilidade científica, às massas incultas e incautas. Assisti a esta conversa lamentável num noticiário da manhã. Quem está a ver televisão a essa hora são os menos preparados de todos os portugueses.
Nessa alvorada de Verão, ainda não tinham chegado as oito horas e já o calor se prefigurava violento. Como é meu costume desde há muitos anos, liguei a televisão no primeiro segmento noticioso que encontrei. Era nacional. E lá estava o meu colega Mário de Sousa, sem dúvida uma das grandes figuras de proa do Instituto Abel Salazar, no Porto. Tenho muita simpatia pelo Mário, que é da minha geração e cresceu connosco, e outro tanto respeito pelo trabalho notável que ele tem vindo a desenvolver num país tão desesperadamente lento, carimbado, notarizado e laboralmente disfuncional como o nosso.
Mas.
Mas no melhor pano cai a nódoa, e esta é a forma mais eufemística que consigo encontrar para descrever o que senti. Fiquei virada do avesso, nas várias conotações de leitura que a palavra pode ter. E tudo aquilo perfumado com a aureóla de charme e sedução de que este grande senhor nunca teve falta -- e tudo aquilo parte integrante da mesma embalagem propagandística. O Mario estava garantir ao jornalista incrédulo que sim, sim, sem dúvida: era só arranjar duas ou três maneiras de curar de vez os piores dos cancros, e o resto estava definitivamente assegurado. Com tudo o que agora temos à nossa disposição de células estaminais, microcirurgia fetal, microcirurgias genéticas, regeneração de orgãos, genética molecular de embriões – pelo amor de Deus, sim, mas claro de sim. Dentro de um século é evidente que seremos imortais.
Bem, ó Mário.
Os meus colegas portugueses que fazem trabalho de ponta, assim como todos os que o fazem internacionalmente, deviam pensar com muito mais cuidado nas coisas que dizem às pessoas desprevenidas. De cada vez que vejo uma parvoíce destas na capa da Time, seguida na semana seguinte por mais do mesmo na capa da Visão, fico com vontade de obrigar todos os biólogos, e todos os médicos, e já agora todos os jornalistas que escrevem sobre estes temas, a frequentar uma pós-graduação qualquer em História das Ciências Naturais e da Saúde para poderem exercer o seu ofício. Estes estudos avançados, ainda por cima, existem em Portugal. É verdade que quase ninguém se interessa por eles, porque não são para se ir ganhar imenso dinheiro a seguir, o que contraria as tendencias básicas de Bolonha assim como contraria descaradamente o espírito dos tempos. Mas dois semestres bastavam para que, ao menos, quem intervém nestas matérias se lembrasse dos erros das suas próprias especialidades, no sentido de não voltar a repeti-los.
Por acaso ainda alguém se lembra de que, em meados do século vinte, tão perto de nós quanto isto, já tinha havido no Ocidente uma onda de vitória destas, exactamente como agora, com a Medicina de ponta a anunciar o fim das doenças infecciosas e toda a gente a embandeirar em arco? Nota de rodapé: então agora note-se que, cinquenta anos mais tarde, ninguém sabe curar a SIDA.
Nessa altura, o inglês Ian Flemming tinha descoberto a penicilina; e,logo a seguir, apareceu a estreptomicina; e, com ela, chegara o fim da tuberculose. Entrávamos na era dos antibióticos, e portanto agora era evidente que, à medida que se fossem descobrindo mais e mais, as doenças iriam todas desaparecendo uma por uma. Como, à época, se pensava que todos os cancros eram da mesma espécie e provinham todos da mesma fonte, ainda fazia sentido pensar no cancro como uma doença única, passível de ser, também ela, curada com antibióticas que deviam estar mesmo ao virar da esquina.
Ainda por cima, isto já vinha na sequência de uma série de expectativas, todas elas bem sucedidas.
Ainda no século XIX, Louis Pasteur descobrira a cura para a raiva e fora a bem dizer posto num altar pelo povo de Paris. As filas para aceder ao seu consultório davam várias vezes a volta ao quarteirão, e era assaz evidente que os iletrados que assim esperavam a sua vez de estarem cara a cara com o Grande Mestre antecipavam uma experiência bastante mais próxima da taumaturgia que do acto clínico: Pasteur ia tocar-lhes, e eles iam ficar curados. A raiva dizimava milhares de europeus por ano, e os seus sintomas terríveis viviam-se em total impotência. A sensação de impotência desespera tanto os humanos como a sensação de poder os enche de energia.
Na segunda década do século XX, o alemão Paul Ehrlich descobrira o Salvarsan, a primeira droga que realmente funcionava contra a síflis, e tirara mais um enorme peso de contágios, deformações e mortes dolorosas de cima do Ocidente.
Todos os dias, estagiários e colaboradores destas pessoas descobrem novos micro-organismos, novas patologias bem definidas que uns anos antes nem tinham nome. Um por um, resolvem-se mistérios e completam-se puzzles. Começam a circular rumores de que estão a ser descobertas curas para todas as doenças. Escrevem-se livros épicos a incensar os valorosos “Fearless Microbe Hunters”. Quando Flemming apresenta a penicilina ao mundo, é uma verdadeira explosão de euforia que varre a Europa. Quando deixarmos de ter doenças, logicamente, deixamos de morrer.
E então, e bastam cinquenta anos para os grandes investigadores esquecerem tudo isto, deixarem de ser no mínimo prudentes, e já estarem outra vez a cometer um erro que nunca vai de deixar de ser erro? A Natureza é um alvo em movimento, Mário. Tu consertas daqui e ela inventa-te um problema completamente novo dali. Agora imortais. Por favor, não acreditem em tudo o que ouvem na televisão. Nem nos jornais e revistas ditos de referência.
Peço a vossa atenção para um pormenor apenas que basta para desmontar este tipo de retóricas.
Dos europeus e norte-americanos que nos antecederam na festa dos “Milagres da Medicina” da primeira metade do século passado, podemos apenas dizer que sofriam do pecado pedante e feio, mas de facto ainda nunca questionado abertamente pela humanidade, de pensarem estritamente em termos dos famigerados : White European Dead Males: mulheres que morressem de parto ou de complicações da gravidez, pretos, indianos, asiáticos, nada disso interessava. Mas nós, agora, já não temos maneira de pensar assim. Não é só porque a saúde e a medicina se globalizaram: é, sobretudo, porque a guerra também se globalizou; e, ao contrário do que esperou em tempos de maior crença na humanidade, tornou-se cada vez mais tentacular e horrível. Os negros e os os porto-riquenhos que se inscrevem como voluntários para irem para o Iraque porque não completaram a escolaridade obrigatória, estão no desemprego, e não têm nada a perder, porventura têm à partida alguma garantia de que não vão morrer? E os homens-bomba, acaso não morrem? Acaso não vai toda esta gente que nós mandamos ir lutar por nós deixar de morrer daqui a cem anos? Enquanto existirem situações de guerra – e já vimos que existem cada vez mais, e cada vez piores – é evidente que vai continuar a morrer muita gente. Já passaram tantos anos, e não se continua ainda a morrer em massa de malária? Alguém acredita que, milaculosamente, agora as companhias farmacêuticas vão dar atenção a um problema que não lhes dá dinheiro a ganhar; e que, em consequência, a malária Vai desaparecer? Para não falar de todos os meninos que morrem em África de fome pura e simples. Como é, vão enxertar-lhes nos embriões uns genes resistentes à desidratação e à subnutrição? Tenham dó. Está mais que provado pelos economistas que a miséria é um dos problemas mais fáceis de resolver do mundo, desde que haja vontade disso. Já se percebeu que também ninguém vai fazer um gesto para acabar com a guerra. Portanto, é evidente que daqui a cem anos os privilegiados podem morrer mais tarde, mais toda a gente morre à mesma.
Então por que é que os nossos melhores cientistas nos mentem desta maneira inconcebível?
Infelizmente, grande parte da explicação reside num cancro aparentemente sem cura que anda a minar a investigação científica internacional.
Estas patetices perigosíssimas, que enchem as pessoas de expectativas e que nunca se cumprirão passaram, entre outras coisas igualmente perniciosas, a fazer parte da estratégia publicitária de muitos laboratórios, com o objectivo de dar nas vistas para arrecadar investimentos privados e, no caso português, para impressionar a FCT – nos outros países, a atitude é a mesma em relação à respectiva grande agência pública de financiamento científico que lá existir. É lamentável, mas há cada vez mais gente a fazer isto. Empolam os seus resultados e tornam-nos conhecidos na Comunicação Social antes mesmo de os publicarem, para que a indústria repare neles e lhes patrocine os projectos. Os projectos até podem ser sérios. Mas são apresentados ao grande público seriamente deformados, porque, de outra forma, ninguém lhes dará atenção.
Pela mesma ordem de razões, há cada vez mais grupos de investigação que, em vez de publicarem as suas descobertas em artigos científicos de grandes revistas internacionais, onde são seriamente revistos pelos pares antes de serem aceites e, depois de aceites, se tornam automaticamente acessíveis a toda a comunidade internacional, preferem fechar-se em copas, não divulgar nem nos congressos nada do que estejam realmente a fazer que seja novo e promissor, e depois, assim que têm resultados válidos, registar-lhes imediatamente a patente e nem sequer publicar. Pode ser de um simples meio de cultura, de um simples anticorpo ainda não existente, ou então de toda uma técnica de clonagem de vacas transgénicas. Não interessa. O que interessa é que, a partir daí, qualquer colega ou qualquer empresa que quiser ter acesso àqueles protocolos vai ter que pagar bem pago. E quem registou a patente vai ganhar muito dinheiro, que pode investir em mais equipamento, mais pessoal, mais investigação, mais resultado. Mas será que esta postura produz, de alguma forma, uma ciência melhor? A livre circulação de ideias foi o que semprte fez a ciência andar depressa desde a invenção da imprensa.
Retrocedemos.
Estamos outra vez a andar muito mais devagar, e muito mais às cegas. E a escavar um fosso cada vez maior, que, depois de tudo baralhado e voltado a dar, não vai beneficiar ninguém, entre a ciência dos pobres e a ciência dos ricos. Em tempos ferozes de economia de mercado, é verdade que ninguém vai conseguir travar a corrente. Mas não deixa por isso de ser verdade que devemos ter, pelo menos em termos morais, uma ideia clara dos estragos com que estamos a pactuar.

Hoje em dia, quando chegamos aos congressos de manipulação de gâmetas e embriões de mamíferos, a primeira sensação que eu tenho é sempre de vertigem, porque se torna por demais evidente que já entrámos na fase de estarmos a fazer demasiadas coisas que não sabemos nem começar a explicar. E, perante esta realidade incontornável, eu não consigo deixar de interrogar-me.
Terá mesmo o conhecimento biológico que progredir sempre de uma forma tão caótica? Estamos a clonar vacas transgénicas, a criar embriões só com pronúcleos paternos ou maternos , a produzir linhas xenoplásticas de células estaminais em cultura, mas desconhecemos o significadio biológico básico de pelo menos metade do que estamos a fazer.
Suponho que podemos argumentar que o conhecimento biológico sempre progrediu de forma caótica, cuspindo primeiro cá para fora quantidades enormes de dados bizarros e indecifráveis, e só se tornando capaz de processar esses dados, e de tirar deles conclusões sólidas, centenas de anos depois.
Um exemplo paradigmático desta forma de evolução seria, a título de exemplo flagrante, a microscopia do século XVII, tornada possível dois séculos antes da formulação da teoria celular. A quantidade impressionante de observações que nos legaram os primeiros microscopistas com as suas lentes rudimentares, o frenesim de publicações deslumbradas que marcou o período, a anarquia de textos e contextos, a febre de ver sem poder saber. Mas, se não tivessem sido todas estas visões mal decifradas e tantas vezes francamente especulativas, a teoria celular também nunca teria chegado a ganhar forma.
É provável, exactamente porque a Biologia assenta na entropia, que a nossa percepção da vida não tenha mesmo outra forma de evoluir que não seja o caos a que só mais tarde se segue a ordem, sendo que esta ordem, como agora bem sabemos, é de qualquer forma sempre precária. No ponto onde estamos hoje, talvez não faça sentido exigirmos demais de nós mesmos e exasperarmo-nos por ainda não sabermos tudo. Tal como aos nossos antepassados, provavelmente compete-nos apenas acumular observações novinhas em folha e registá-las o mais detalhadamente possível, para que quem vier a seguir consiga chegar ao fundo da sua biologia básica. É possível que tenhamos encontrado um outro alfabeto que ainda não sabemos ler, tal como o alfabeto da biologia celular surgiu como uma charada cósmica perante os olhos extasiados dos primeiros microscopistas. Um dia alguém há-de descobrir o código, e então todos poderão ler o que nós estamos a desenterrar agora.
Mas isto é profundamente irritante. Fazemos tanto e sabemos tão pouco. Estamos em constante fuga para a frente, e, de dia para dia, arrastamos atrás de nós um peso crescente de mistérios por resolver. E, algures nos meandros desses mistérios, está escondida a chave que nos dará o código que decifrará o nosso novo alfabeto. Talvez tenhamos que aceitar que isto é assim mesmo. Mas é frustrante, seriamente frustante, não podermos parar a corrida para irmos primeiro procurar escrupulosamente a chave.
Foi exactamente por causa disto que, em 1994, abandonei o meu trabalho em clonagem de mamíferos e fui para Harvard estudar e investigar em história da Biologia. Descobrir a chave que dá acesso ao código tinha-se-me tornado muitíssimo mais apelativo do que continuar a correr para a frente no escuro. E essas chaves, regra geral, encontram-se nos grandes ciclos do passado. A humanidade sempre quis tanto encontrar o segredo da imortalidade, e mesmo o da eterna juventude. Em todas as culturas, em tempos históricos tão diferenciados, pessoas que nunca tinham estado em contacto umas com outras sentiram-se tantas vezes na posse do segredo da imortalidade. Se pensarmos nisto assim, compreendemos melhor por que é que a promessa da imortalidade por clonagem terapêutica e engenharia genética pode entusiasmar as pessoas e seduzir a indústria farmacêutica: estamos, de certeza, perante uma das mais antigas demandas da humanidade.
O Paleolítico não teve lugar apenas num sítio preciso do mundo. É uma fase da caminhada humana que deixou marcas em todo o planeta. E, nessa altura, em todas essas partes do planeta, sem nunca terem falado umas com as outras, as pessoas eram enterradas com os seus bens mais elementares de sobrevivência. Se eram, era porque se acreditava que voltariam a viver. Não podemos especular muito mais, mas temos dados para saber que o conceito da vida depois da morte já existia na alvorada do Homo sapiens.
E no antigo Egipto, e em todas as outras civilizações em que os reis, ou imperadores, foram considerados deuses em vida? Os deuses não morrem. Partem para as esferas mais altas onde habitam os outros deuses. E mais: em certas noites, quando a conjugação astral é porpícia, descem ao mundo e vêm habitar as suas próprias estátuas. Vivem frequentemente connosco, embora nós não possamos vê-los. Tantas estátuas do Ramsés II para quê? Então, para ele se instalar lá dentro durante a noite e vigilar sobre o sono do seu povo.
Aliás, o contacto entre os faraós mortos e o seu povo na Terra estava permanente assegurada pelo KA: era uma figura miniatural da pessoa em que vivera, que se desprendia do seu corpo no momento da morte para velar sobre o seu corpo por toda a eternidade. Os cidadãos comuns e os escravos não mereciam qualquer abrigo especial para o seu KA, embora ele existisse; mas, no caso dos faraós e das rainhas, o caso mudava de figura: construam-se pirâmides, rasguem-se túmulos impensáveis no Vale dos Reis, cubram-se de riquezas, que este KA, que é a miniatura do homem ou mulher onde viveu, vai ficar aqui para sempre e tem que ser tratado com o devido de respeito.
E entretanto, sobretudo durante o reinado implausível de Cleópatra e Marco António, lá andavam os sacerdotes da corte numa agitação intelectual e química tremenda para, por ordens dos sobreranos, descobrirem o filtro da vida eterna. Como os alquimistas que vieram depois deles, foram imediatamente procurá-lo ao ouro, de todos os elementos aquele que menos se corrompe e mais brilha, independentemente da passagem dos anos.
Até os Aztecas, que não eram particularmente simpáticos com os seus mortos, concederam a imortalidade aos mais bravos dos bravos. As pessoas comuns desciam por um corredor horroroso por baixo do chão, enfrentavam nove provas perigosíssimas, e finalmente desaguavam na câmara imensa habitada por Tupac, o deus da morte, basicamente uma caveira corcunda com as mãos em garra e o fígado pendurado da cavidade abdominal. Mas o caso mudava de figura para as mulheres que morriam de parto e para os guerreiros que morriam em combate: as primeiras iam para sempre empurrar o Sol no céu da alvorada até ao meio-dia, e os segundos sucediam-lhes na tarefa do meio-dia ao crepúsculo.
O que é que Jesus Cristo prometeu aos que O escutaram que levou a tantas conversões em massa, antes e depois da Sua morte, incluindo a de todo o Império Romano sob Constantino, e logo a seguir a das hordas de godos que seguiram Alarico na tomada de Roma através da Porta Salariana à meia noite de do dia 25 de Maio de 314? Evidentemente, o que aliciou assim as massas nas promessas de Jesus foi a conquista da Vida Eterna através de um comportamento que estava nas mãos de cada um adoptar durante a vida terrena, e nem sequer exigia de ninguém nada de especial à excepção da fé, da bondade e do perdão. E, pela primeira vez na história das Religiões, cumpridos estes deveres em Terra, a seguir ia-se para um sítio mesmo bom. Sem mais aflições. E para sempre. Quem é que não quer?
Se Jesus não tivesse ressuscitado ao Terceiro Dia, certamente que não teria logrado tanto seguimento, e tão longevo, por muitos milagres que realizasse em vida. Mas ou ressuscitou mesmo, ou os Seus cronistas da época acreditaram que tinha ressuscitado. E foi assim que a Vida Eterna calou tão fundo no sonho humano.
No século IX da nossa era, o pai da alquimia moderna, Jâbir Ibn Hâyan, nascido no que agora é o Iraque, lançou a ideia da pedra filosofal que nos permitiria viver para sempre. Um dos exemplos que deu, para persuadir os leitores de que isto viria a ser possível, foi tirado de um episódio pouco conhecido da Antiguidade Clássica: de como Dédalo deu vida a uma estátua de madeira de Vénus esfregando-a com mercúrio. Uma das grandes febres alquímicas de transformar o mercúrio em ouro nasceu daqui.
Todo o imaginário medieval europeu está repassado de histórias de viagens até paragens longínquas, algumas rigorosas e outras tantas inventadas. O que é impressionante em todo este legado é a quantidade de fontes de vida eterna, de rejuvenescimento, ou de cura de todas as doenças, que os autores nos contam existirem espalhadas pelo mundo. Há uma em forma de mexilhão gigantesco no caminho para a corte do Preste João. Há uma com autómatos mecânicos que sopram foles e fazem subir e descer aves canoras na corte do Grande Khan em Karakorum. Há um óleo que cura todas as doenças a escorrer do corpo incorrupto de Santa Catarina, no alto de um penhasco guardado por monges com voto de silêncio, algures na Terra Santa. Conta-se que brotou uma fonte da cova que um leão escavou no deserto para receber o corpo de Maria do Egipto, a prostituta pública de Alexandria tornada eremida para lá do Jordão e mais tarde elevada a santa; e que o abade Sózimo, que bebeu dela, viveu até aos duzentos anos sem nunca lhe branquearem os cabelos. E assim por diante. É apenas normal que, quando começam as Descobertas espanholas e Ponce de Léon descobre a Florida, a primeira coisa que comunica à Coroa seja a da descoberta da Fonte de Eterna Juventude. Ainda hoje lá vai imensa gente, não se sabe bem se por mero turismo se por esperanças vestigiais que não são confessáveis.
Aliás, os mapas do mundo que começam a desenhar-se a partir do início das Descobertas incluem frequentemente a localização do Paraíso na Terra. Não se trata do Paraíso Celeste, para onde partem depois da morte todos os bem-aventurados que tiveram fome e sede e justiça. Trata-se mesmo do lugar físico onde terão vivido Adão e Eva antes da Queda, muitas vezes assinalado como Ilha de São Brandão devido à lenda da Ilha da Promissão dos Santos descoberta pelo monge irlandês São Brandão no século VI. O Paraíso esteve assinalado um pouco por todo o mundo, na bacia do Tigre e do Eufrates, para lá do Ganges, na Bahía, na Ilha de Reunion, até no Taiti. Depois não teve outro remédio senão desaparecer. Mas por que é que foi tão procurado? Obviamente, porque quem chegasse lá alcançava automaticamente a imortalidade.
No século XVI, o suíço alemão Theofrastus Aureolus Bombastus von Honheimein, conhecido pelos seus seguidores como Paracelso, simultaneamente um grande médico, um grande alquimista e um notável alcoolico, fez numerosas expriências relacionadas com a utilização da putrefacção, e consequente fermentação, como fonte para a criação da vida. A sua fórmula básica consistia em enterrar o que se pretendia criar debaixo de uma pilha compacta de estrume de cavalo – este ingrediente garantia a manutenção da temperatura e humidade constantes, sempre necessárias para a génese da Vida – seguida de alimentação da forma em criação por sangue de outro ser vivo, até que ainda fosse transparente mas já se notasse que alguma coisa mexia. A partir daí, a criatura devia passar a ser alimentada com o “arcano do sangue humano”, expressão que Paracelso usa frequentemente para o sémen.
Evidentemente, não se conhece registo de nenhuma criatura viva fabricada através das fermentações de Paracelso. Mas não há dúvida de que o Mestre acreditava nas suas receitas, e os discípulos acreditavam ainda mais. Paracelso estava morto há duas semanas quando se soube que tinha dado ordens ao seu único criado fiel para o cortar aos bocados e o enterrar sob estrume de cavalo, para poder ressuscitar como um homem muito belo. Infelizmente, explicou apressadamente a lenda que se seguiu, o criado abrira o buraco cedo demais porque não sabia contar, e assim destruira o sonho do seu amo.
As histórias de como descobrir organismos invisíveis causadores de doenças, e de como contra-atacar em benefício da humanidade, começam a pulular a partir da segunda metade do século XVII, quando o microscópio entra em força na Biologia como objecto de estudo. E depois vão sempre num crescendo até ao século passado, com anúncios repetidos de que estamos a dois passos de resolvermos todos os nossos problemas físicos e tecnológicos. Pense-se no mundo glorioso que se pensava estar mesmo a chegar na euforia do pós-guerra, em que só precisaríamos de trabalhar três dias por semana, teríamos em casa robots que nos fariam tudo, os nossos carros voariam, a Lua estaria cheia de parques de estacionamento e todas as doenças se corrigiam por cirurgia fetal, ainda nem a estrutura do ADN estava devidamente conhecida? E não era a ciência que ia proporcionar-nos tudo isso? Então, e vocês ainda acreditam nos milagres da ciência?
É por isso que eu gosto de estudar estas coisas.
No entanto, os ossos do ofício existem. Nunca me desliguei complematente da manipulação de gâmetas e embriões, primeiro porque o vício da bancada fica connosco para sempre, segundo porque dou aulas na Universidade sobre essas matérias, e terceiro porque foi aqui que deixei uma parte substancial dos meus amigos de todo o mundo. Por isso, estou em condições de levantar a cortina sobre um segredo que é da maior relevância para este projecto de partilha de dados, perplexidades e reflexões.
A melhor maneira de imaginarmos o que realmente poderá vir a passar-se no futuro no domínio da manipulação genética, já que tudo isto por enquanto ainda está completamente dentro do domínio especulativo, é ouvirmos um momento de desbunda entre três cientistas que estão a jantar juntos depois de mais um dia de sessões e posters de um congresso. Por exemplo, o da Embryo Transfer Society. Este foi o de 1999, em Quebec Citty. Podia ter sido outro qualquer.
As desbundas ao jantar, ou em torno de rodadas infindáveis de cerveja, depois de encerrados os trabalhos do dia, são, com grande probabilidade, a parte mais criativa e produtiva das congressos. É quando os cientistas não estão a escrever para nenhuma agência de financiamento para que ela lhes aprove as bolsas: estão com amigos, completamente descontraídos, e sabem que podem especular e partir pedra à vontade. É sempre extremamente animado, por vezes hilariante, por vezes assustador. Mas não é, de certeza absoluta, a capa da Time. E por aqui é que realmente passa a corrente do que poderá vir a acontecer no futuro.
No caso concreto que passo a apresentar-vos, os protagonistas do jantar somos eu, que fui lá fazer o keynote adress; o James Robl, que trabalha em clonagem e nessa altura já tinha clonado os famosos seis vitelos transgénicos que apareceram em tudo o que era Comunicação Social, pelo que lhe choveram logo em cima ofertas sedutoras do sector privado; e o Dominic Poccia, que trabalha em fertilização e se recusa terminantemente a ser mediático apenas para receber mais facilmente dinheiro das bolsas, ou das grandes empresas, ou da indústria farmacêutica. Pode estar tudo à venda, mas ele faz questão de ser o último mohicano. Nunca patenteou uma única das suas descobertas.
O Jim está mesmo dentro daquela linha dura de constituir empresas, patentear resultados e ganhar dinheiro. No nosso jantar dessa noite, é ele que está no uso da palavra quando levantamos a cortina. Já começou há um bom bocado a discutir comigo a possibilidade de no futuro podermos manipular o genoma dos nossos embriões para eliminarmos doenças como a depressão ou a ansiedade. Eu estou a fazer de dúvida metódica, ele entusiasma-se, e começa a desenvolver um cenário hipotético em que se eliminam genes e inserem genes a granel e a gosto.
Nesta altura, o Dick já não consegue ficar calado. Recorde-se, em seu abono, que ele nunca cedeu ao canto da sereia e sempre fez questão de ser conhecido como um professor sério e o melhor advogado do diabo das suas próprias experiências. Com um bom murro na mesa, recorda nos que a expressão genética é regulada por promotores, os constituintes do ADN responsáveis por controlar a actividade de um dado gene ou de um conjunto de genes. Ou será que imaginávamos que todas as centenas de milhares de genes no nosso corpo estavam completamente activas a toda a hora? Será que não sabemos que os genes estão permanentemente a ser activados e desactivados para que os organismos possam funcionar?
Claro que tanto eu como o Jim sabemos isso muito bem, e todos os anos o repetimos aos nossos alunos.
Mas é que os prazeres da ciência ainda dependem bastante da nossa vontade de sonhar. Isto não é um painel de avaliação de projectos, Dick. Isto é um jantar de desbunda. Nenhum de nós veio para esta mesa para ser obrigado a estar a conter-se. Assim que o Dick lança o seu lembrete de deitar água na fervura, descobrimos que a questão dos promotores implica outra possibilidade excitante.
Os promotores efectuam a sua missão reguladora respondendo a diferentes sinais, como as hormonas, ou as concentrações de metal. Portanto, digamos que...
O Dick acabou o seu sermão. Agora é ele quem está a delirar:
— Queres que o teu filho seja alto? Toda a gente parece querê los altos hoje em dia. Que é para depois se transformarem nos novos herois do basquete e os pais ficarem ricos. É ou não é? Nesse caso, o que tu queres é esse famoso produto genético chamado hormona de crescimento. Mas tu não queres que o teu filho se torne um gigante quando tiver dois anos. Queres manter o gene quietinho até o miúdo chegar à adolescência. Ora, tudo o que tens de fazer é fabricar um promotor para o gene da hormona de crescimento que responda a... não sei, qualquer coisa que não faça mal ao organismo, um certo nível de zinco, por exemplo. Enxertas esse promotor no genoma do teu núcleo de espermatozóide eleito, transfere lo para o ovo, mais tarde a criança nasce, e quando tiver treze anos tu dás lhe pílulas de zinco. Oh, como cresce! E cresce! E podes modular o crescimento aumentando ou diminuindo as doses de zinco. Que tal?
Há aqui muito potencial, pelo que cenários bizarros irrompem de todos os lados da mesa. Acho bastante divertida a ideia de este promotor, manipulado para depender do zinco, acabar por ser passado por acaso para uma senhora que nasça três gerações mais tarde. Acontece que esta senhora não faz ideia de que é portadora do promotor e, um dia, na casa dos cinquenta, tem de tomar zinco por uma razão que não tenha nada a ver. Ou decide simplesmente tomá lo devido a um artigo no jornal da manhã que diz que um novo estudo demonstra os grandes benefícios do zinco. Essa pobre senhora só queria prevenir os ataques cardíacos. Mas de repente começa a crescer! E não faz ideia de porque é que isso lhe aconteceu!
Contudo, não tenho oportunidade nem de me rir durante um minuto, porque há alguém que assume prontamente o papel prudente de desmancha prazeres da festa e me diz que isso não tem piada. Além disso, como todos acabamos por concordar, não é de todo exequível. Ao contrário do culpado da fibrose multicística, a maioria dos genes não trabalha sozinha; são coordenados por esquemas complexos de interacções, por vezes em grupos de mais de cinquenta, pelo que nunca será assim tão fácil manipulá los com um resultado específico em vista. Para além disso, o mesmo zinco que activaria promotores para estimular um gene a fabricar a hormona do crescimento podia ao mesmo tempo dizer a outros promotores que desactivassem outro gene de cujos produtos precisamos. Isso seria muito provável, porque vários promotores, cujos vários grupos modulam diferentes genes, respondem aos mesmos sinais. Seria tudo uma grande embrulhada. Nesta altura, a empregada de mesa vem anunciar nos que já não têm o vinho que pedimos e o entusiasmo sobre a modulação de genes arrefece.

Tendo-vos revelado um pouco daquilo de que os cientistas realmente dizem uns aos outros quando estão sozinhos e descontraídos, não posso deixar de acrescentar o último retoque no quadro, porque constitui um verdadeiro golpe de misericórdia.
Esta conferência em Quebec Citty foi em Janeiro. Dois meses mais tarde, a University of Chicago Press decidiu organizar uma colectânea de textos sobre o futuro da manipulação de gâmetas e embriões. Entre vários colegas de todo o mundo ligados à área, convidou-me também a mim.
Essa colectânea acabou por causar tanta polémica que nunca chegou a ser publicada. No meu caso específico, escrevi sobre o que me parecia sensato podermos admitir que virá a acontecer com base nestas técnicas, e decidi terminar exactamente com a conversa entre cientistas que acabei de contar-vos, apenas com muitos mais pormenores sobe as ideias fabulosas que tínhamos posto na mesa antes da do zinco, porque aí dispunha de espaço para me expandir à vontade. Tomei essa decisão exactamente para as pessoas terem uma ideia do que é que são os nossos sonhos, nas alturas em que estamos só a sonhar – e de como, mesmo nos sonhos, a maior parte dos objectivos que nos propomos atingir são inatingíveis. Pois bem, o meu referee mandou-me cortar imediatamente toda essa parte:
“Reparem bem na conversa entre a Clara, o Jim e o Dick na conferência de Quebec Citty. É exactamente destas coisas que as pessoas têm medo”.
Ou seja.
As pessoas têm medo de cenários assumidamente de brincadeira que envolvem produtos tão inocentes como hormona do crescimento e pastilhas de zinco. Mas não têm medo de ouvir o Mário de Sousa, cem por cento convincente no seu papel de cientista louco, a jurar-lhes que daqui a cem anos seremos todos imortais. As pessoas só querem ouvir coisas bonitas? É possível. Mas não compete aos cientistas desempenharem essas funções. Foi assim que Adolf Hitler conseguiu arrastar as multidões atrás de si – mas, pelo menos na versão oficial, a Alemanha perdeu a guerra.
Ainda por cima, hoje está mais que assente que começamos a morrer assim que nos formamos enquanto embrião. Já começamos a ouvir dizer que a Biologia do Desenvolvimento devia chamar-se antes Tanatologia do Desenvolvimento, exactamente porque toda a vida constitui uma preparação lenta e cuidadosa para a morte. Assim que se forma um novo organismo, as pontos dos seus telómeros começam imediatamente a encolher de uma divisão celular para a outra. O que quer dizer que já nascemos nove meses velhos, e ainda estamos muito longe de descobrir alguma espécie de protocolo para travar este processo. Garantir que vamos viver para sempre é, de facto, uma inverdade extremamente grosseira. Infelizmente, quem quer ser famoso para ser financiado já há muito tempo que não olha a meios para atingir os fins. Ou pronto, se calhar, o Mário nem se lembrou do encolhimento dos telómetros.
Agora, é indiscutível que, com a recuperação de orgãos que entrem em colapso utilizando células estaminais para a chamada clonagem terapêutica, é certamente verdade que, mais cedo ou mais tarde, vamos começar a viver bastante para lá dos cem anos, e com uma qualidade de vida muitíssimo superior à actual. Mas, até para este cenário aparentemente optimista, vai haver uma factura substancial a pagar. E essa factura pode ser muito perigosa.
A lenta degradação dos nossos orgãos vitais é uma parte integrante do processo de envelhecimento. E o envelhecimento é o processo natural de nos prepararmos para a morte. Claro que nenhum de nós quer morrer, mas ficarmos vivos por muito mais tempo pode trazer-nos imensos problemas complicados. Alguns dos meus colegas acreditam que a reparação selectiva de orgãos decadentes por intermédio de células competentes clonadas de nós próprios, seja qual for a técnica definitiva que venha a ser utilizada para este efeito, aumentaria a nossa esperança de vida para cerca de trezentos anos. E isto pode acabar por ser um tédio medonho. Ninguém faz ideia de qual é a sensação de se continuar vivo, e vivo, e vivo, para lá dos cem anos.
Mas há problemas sociais decorrentes bastante piores que o do enfado de cada um de nós.
Estas técnicas não superam as limitações naturais dos nossos anos de fertilidade. Ainda não se descobriu nenhuma maneira de prolongar espontaneamente o nosso periodo reprodutivo. Isto criaria um contingente crescente de anciãos, que começaria a pressionar a população mais jovem para não se reproduzir, tendo em conta a sobrepovoação do planeta. Os filhos acabariam por pagar pela vida dos pais com o que há de mais fundamental nos nossos impulsos: o desejo de reprodução. Para além do mal-estar social logicamente decorrente, esta queda das taxas de fertilização acabaria por rarefazer o banco de genes da espécie humana. E a variação genética é a garantia mais fundamental de subsistência para todas as espécies de reprodução sexuada.
Também podemos acabar por estagnar a nossa cultura. Não temos nenhuma maneira de saber se nos mantemos intelectualmente criativos depois dos noventa anos de idade. Não sabemos se um Homo sapiens de 200 anos continua a ter ideias novas para contribuir, romances inquietantes para escrever, formas musicais novas para explorar. Além disso, como iam nascer cada vez menos pessoas em cada nova geração, o número de novas vozes, de novas visões, e portanto de propostas revolucionárias diminuiria abissalmente. Poderíamos acabar por criar a civilização mais letárgica de todos os tempos.
Isto para não falar de todos os problemas com a segurança social, e o custo dos constantes reparos de orgãos. Com que idade é que esta gente se reforma? Quem é que paga todos os anos improdutivos? É possível que as técnicas sejam caras, e isso criaria um sistema de castas muito desagradável em que os ricos viviam mais tempo que os pobres – as disparidades económicas convertiam-se em disparidades biológicas de uma forma nunca antes vista.
Acresce a tentação de começar mesmo a mexer nos genes. E, mesmo que seja só para erradicar doenças, esta missão aparentemente nobre também levanta problemas. Do mesmo modo que poderíamos erradicar a fibrose multicística pela manipulação de genes, também conseguiríamos erradicar um largo espectro de neuroses. Isto parece optimo à primeira vista, já que ninguém quer viver com duplas personalidades, depressões, ou ataques patológicos de ansiedade – e quem já passou por isso de certeza que não quer que os seus filhos passem. Mas, por mais dolorosos que estes problemas possam ser para quem os sofre, as perturbações da saúde mental sempre tiveram um papel importante na evolução das nossas culturas. Quem eram o Wagner, o Niescht, o Galileu, a Frida Kalo, o Picasso, o Klaus Nomi? Se os humanos se tornassem universalmente plácidos e satisfeitos, não restaria ninguém para se interrogar. Deixariam de existir espíritos irrequietos, vozes que clamam no deserto e imploram ao rebanho adormecido que acorde. Um grande benefício pessoal a curto prazo pode descambar numa catástrofe devastadora colectiva a médio prazo.
Não podemos dar-nos ao luxo nem de fazer birras de meninos mimados nem de esconder a cabeça na areia como a avestruz.
Sabemos muito bem que tudo tem um preço.
Faz parte da nossa maturidade assumirmos que não podemos usufruir de benefícios sem pagarmos impostos.
Antes da revolução industrial não havia poluição, mas alguém quer voltar a viver como se vivia dantes?
Antes dos problemas tremendos criados pelos pesticidas existiam pragas horríveis e fomes bíblicas.
Ao menos desta vez, se estivermos acordados, a factura da mudança não vai apanhar-nos de surpresa.
Isso é novíssimo, e é importantíssimo. Mas, para que possa ainda vir a fazer alguma diferença, é de facto preciso que ainda estejamos dispostos a pensar e a debater. E, sobretudo, a termos vontade de se felizes.