segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

ENTREVISTA: JOSÉ ANTÓNIO SAMPAIO DA NÓVOA, REITOR DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

ANTÓNIO SAMPAIO DA NÓVOA
Como quem sabe o que diz

(e isso é raro)

Se por acaso perguntassem ao Reitor da Universidade de Lisboa o que é que mais quer para o Natal, ele provavelmente responderia que queria um ministro do Ensino Superior capaz de ouvir quem sabe o que é que está a dizer sem puxar logo da pistola. António Sampaio da Nóvoa, 51 anos, 1 filho, doutorado em História pela Sorbonne, especializado em História da Educação em Genebra, Professor Catedrático da Faculdade de Psicologia e Ciências Sociais até há pouco tempo a trabalhar da Columbia University em Nova York, foi o homem que se tornou subitamente conhecido de todos os portugueses ao destacar-se nos Prós e Contras pela oposição firme e bem fundamentada que manteve a José Mariano Gago durante o debate sobre o presente e o futuro das Universidades portuguesas, numa altura em que todos os participantes pareciam prestes a perder a cabeça e desatar a atirar projécteis perigosos uns aos outros. No calor de uma grande discussão, há muitas questões fundamentais e sérias que se perdem para quem não está completamente dentro do assunto. Impressionada pela sobriedade e rigor deste cavalheiro tranquilo, tanto quanto pelo drama de desamorodamento sem solução à vista que as nossas Universidades atravessam neste momento, pareceu-me oportuno pedir-lhe que se explicasse melhor para o leitor comum, que nem sequer tem a obrigação de perceber a graça ou a perversão dos golpes baixos disparados nas grandes discussões públicas. Tentei fazer o mesmo com o Ministro, mas ele nunca me respondeu. Pelo menos para perceber este lado da história, vale a pena ler o que Nóvoa me disse. O descalabro complexo que ele está a ter que gerir afecta-nos a todos como país e sociedade, e vai afectar-nos cada vez mais no futuro.

No tempo de José Barata Moura, o gabinete do Reitor, no edifício clássico da Reitoria ali a meio do Campo Grande, era uma espécie de caverna de Ali-Babá toda empilhada de livros e mergulhada na penumbra. Ao suceder-lhe no cargo, António Nóvoa mandou levantar finalmente as persianas, abrir os vidros, deixar entrar ar, e limpar bem as paredes infiltradas do fumo de oito anos de cachimbadas. Agora está tudo luminoso, arejado, até mesmo arrumado, o que não é tão frequente como isso nos sítios onde trabalha um homem. Ao contrário do seu antecessor, António Nóvoa é magro, de barba bem aparada ainda escura a contrastar com o cabelo grisalho cortado curto. Quando se entusiasma, torna-se invulgarmente coloquial para a ideia feita que temos de um Reitor. Nunca hesitou a responder às minhas perguntas, e nunca me pediu para rever a entrevista depois de escrita. Temos homem.
O Ministério tirou-me 15% do meu orçamento, diz ele. Mas, se mesmo assim eu não pagar a toda a gente na totalidade, sou preso porque estou a infringir a lei. É absurdo.

Não pode reduzir os seus funcionários, para equilibrar a balança? Não, na função pública não pode ser o Reitor a tomar essas medidas. Portanto nós hoje, em Portugal, temos uma lei que nos obriga a pagar catorze meses a todos os seus funcionários, e a manter toda uma série de compromissos que já estavam assumidos. Mas, de repente, o Ministério vem dizer-nos que vamos receber menos 15% da verba que tínhamos para isto, sem mudar o enquadramento legal ao mesmo tempo. Ficamos pendurados. Se me dissessem que íamos fazer uma grande reforma para podemos manter os encargos suportáveis, como acontece nos Estados Unidos, eu já não teria nada contra os cortes do Governo. O que não podem é dizer-me que eu vou receber menos dinheiro mas ser obrigado a pagar os mesmos salários. Isto torna a equação irresolúvel.

Então o que é o que o Ministro devia ter feito? Basicamente, o mesmo que a Ministra da Educação. Ela fechou escolas, reduziu a rede, e adequou os problemas da carreira docente. A combinação destas políticas vai dar poupanças substanciais. O Ministério da Ciência não fez políticas novas, não mudou nada, mas agora diz que temos que gastar menos.

Ele diz que isto já foi feito assim noutros países, pedindo-se às pessoas que vão buscar complementos do salário mais baixo a bolsas e projectos. E que isso é uma forma de promover a qualidade dos corpos docentes.

Estes sistemas não podem transferir-se de forma imediata de uns países para os outros de forma imediata. Eu não discordo do princípio de que deve haver uma base salarial para todos e que os complementos sejam feitos através de projectos e de que tem mais capacidade de captar bolsas. No Brasil, por exemplo, uma parte de fazer o complemento salarial é exactamente a partir do número de bolsas que cada equipa tem. Desde que o salário de base seja minimamente compatível com a função de professor universitário, não tenho nada contra.

Então o que é que o Ministro diz é que é, na sua opinião, tão demagógico? O que ele diz para o grande público ficar satisfeito é profundamente demagógico! Está a colocar as instituições entre a espada e a parede, e ao mesmo tempo a dizer que o problema não é dele, é das universidades. Isto é descartar para as instituições um problea que elas não têm capacidade para resolver, de uma forma que vai torná-las ingovernáveis. E ainda nos põe uma placa ao pescoço a dizer que somos, apenas, “corporativos!”.

Mas na argumentação do Ministro...
Este Ministro não argumenta. Nem sequer explica como é que acha que devemos fazer ou podemos ser. Desvia o assunto. Só diz que encomendou dois relatórios internacionais e que, quando chegar o resultado, então vai fazer qualquer coisa. Não consegue pensar sozinho?

No entanto, o Professor dá-lhe razão nalgumas coisas. Ó Clara, repare bem que, do ponto de vista das ideias, nem sequer há assim discordâncias claras. Até há uma base de acordo grande. Mas há, do lado do Ministério, e isso há mesmo e é mesmo grave, uma total falta de coragem política para alterar aquilo que precisa de ser alterado.

Então dê-me exemplos. Com muito gosto. Primeiro: é preciso fechar muitas instituições de Ensino Superior, porque a rede nacional é absurda. Segundo: é preciso mudar o modelo de gestão das universidades, porque este modelo é obsoleto e já não serve. Terceiro: é preciso mudar o estatuto da carreira docente, que também é obsoleto, e, assim como está, premeia medíocres, castiga quem tem progressos mais livres, em várias áreas, fora de Portugal, e só apoia aquilo a que eu chamo as carreiras do silêncio. Ou seja, é muito bom para quem não tem visibilidade, não fala, não aparece, mas porta-se bem e vai sendo promovido. E estas três reformas, que iam mudar tudo, o Ministro não as fez porque não tem coragem. Eu não posso mudar as leis da República, embora gostasse muito. Ele pode. Mas não age onde tem a obrigação de agir. Se agisse, então já era legítimo que andasse para aí a dizer que é preciso mudar as universidades.

Dito assim, parece que quem quer mesmo mudar a Universidade não é o ministro, mas sim pessoas como o Professor. Eu não sei o que é que o Ministro quer. Mas sei que a Universidade portuguesa não merece ser defendida pelo seu imobilismo. Aquele “endogamismo” de que somos tantas vezes acusados é-nos imposta pela própria lei. Eu luto pela reforma da Universidade, e não pela perpetuação do estado de coisas. Retirar-nos qualquer possibilidade de reforma e depois exigir-nos a reforma é impossível!

Mas a imagem que passa cá para fora é a de que são vocês que não querem mudar nada... Claro! É muito fácil passar esse tipo de mensagem, não é? Malandros, vão trabalhar, não querem fazer nada, e por aí adiante. É um discurso completamente estúpido, mas claro que conquista muitas simpatias populares. Olhe, eu por mim, se a iniciativa partisse do Ministro, não levantava um dedo para pagar o 13º mês aos meus funcionários e docentes. Se estamos a viver acima das nosss posses, então com certeza. Mas tem que ser ele a fazer isso. Não posso ser eu. Agora, ele não o faz. Não tem essa coragem. Em consequência, por falta de verba, obriga-nos a fechar laboratórios e bibliotecas, a viver com edifícios completamente degradados, e ainda a rescindir o contrato com algumas das pessoas mais interessantes que cá temos, como os jovens que ainda não têm vínculo. Não precisa que eu lhe diga que isto é uma verdadeira tragédia, pois não? Estamos a ser reduzidos à impotência. Na retórica do Ministro, claro, são tudo coisas que resultam da nossa incompetência enquanto gestores...

Há quem diga que tudo isto é uma manobra liberada do Governo para acabar por privatizar a Universidade pública sem dar mau aspecto.

Bom, hoje em dia há duas tendências internacionais muito claras. Uma delas, de facto, é privatizar as Universidades, porque elas vão ser um dos grandes mercados do século XXI. Para isso, por as Universidades em estado de letargia para depois lhes passar uma certidão de óbito pode ser uma agenda política. Tem acontecido em vários países. Por as universidades em estado de ingovernabilidade para depois se poder dizer que elas são ingovernáveis é exactamente a agenda da OCDE. Mas eu creio que não deve ser a do actual governo. Há outra grande tendência. O Ensino Superior massificou-se. Essa massificação acarreta uma sensível descida de nível. Isto dificulta a promoção da excelência em áreas de ponta pelas instituições. Portanto, então é melhor transformar as Universidades numa espécie de liceus um bocadinho mais avançados e especializados, e enviar para outras estruturas tudo o que sejam as verbas mais importantes para Ciência e Tecnologia. Talvez a agenda deste governo passe mais por aqui, e isso explicaria por que é que não aparecem as tais políticas destinadas a diminuir a rede de Universidades. Se é só para criar liceus, os grandes polos de excelência deslocam-se noutros sentidos, criam-se novas redes científicas, e todos os polos “universitários” podem ficar onde estavam.

E isso, para si, é uma boa política?
Para mim? Não! Eu acho isto um erro histŕico. Seira a degradação total da nossa ideia de universidade como centro de cultura e centro de produção de conhecimento. Não temos alternativa para o desenvolvimento da cultura e do conhecimento, e acabaríamos por ficar sem eles. E, sem eles, estamos condenados a ser estupidamente pobres. E o Governo sabe disso. Repare bem nesta ironia do destino: sempre que querem estabelecer grandes parcerias internacionais, vão buscar as grandes universidades americanas, como o MIT, a Carneggie Melon, Harvard, Austin, ou Berkeley. Ora, estas são exactamente as universidades do mundo onde a junção entre o ensino e a ciência se faz de forma mais clara, e de mais qualidade. Exactamente porque é lá que está o conecimento, é lá que está o ensino, e é lá que está a ciência.


Então por que é que o Professor tem deixado claro, por mais que uma vez, a sua reacção negativa em relação aos acordos com o MIT, que foram os primeiros dessa série?


Porque estamos a jogar com dois pesos e duas medidas, e isso nunca é bom para ninguém. Os contribuintes estão a pagar milhões de Euros nessas parcerias, que, aqui, são sobretudo políticas de exibição. Na Ciência internacional, tudo é feito de forma competitiva. Não há verbas dadas à partida para nenhum grupo. Os governos não inteferem nestas coisas. Antes de Portugal, todos os acordos internacionais que o MIT fez nunca foram com governos. É humilhante. Tratam-nos como se fôssemos um país do Terceiro Mundo, e nós comportamo-nos como tal. Depois do acordo entre o Governo e o MIT fez-se então um segundo acordo, agora entre o Governo e as Universidades. No topo está uma direcção, chamada Program Comite Governing, constituída por três pessoas de cada lado, e o lado português não dá para acreditar. São os três da mesma Universidade, dentro da Universidade são do mesmo Instituto, e dentro do Institudo são todos do mesmo grupo. E, por acaso, o José Mariano Gago e o Secretário de Estado são dessa mesma Universidade, desse mesmo Instituto, e desse mesmo grupo! Não acha que já é um excesso de coincidências? O Ministto justifica esta situação com o seu habitual “ a escolha por excelência”, mas no português corrente isto costuma ser considerado compadrio. Digo-lhe mais: o MIT nunca tnha recebido dinheiro directamente de um Governo estrangeiro, e este acordo foi discutidíssimo lá dentro. Só que uma oferta de 32 mlhoes de Euros não é propriamente possível de ignorar em favor da lisura moral e ética. E eles não têm que fazer nada! Os seus comunicados referem sempre “um acordo estremamente proveitoso para o MIT”, e eles sabem do que estão a falar.

Ainda por cima, o que verdadeiramente acabou por resultar desses acordos foi a formação no esrangeiro, no topo da gama, de gente nova que depois não ter lugares para se inserir em Portugal. Exactamente! E o próprio estatuto da carreira docente torna a inserção destas pessoas na Universidade portuguesa a bem dizer impossível. Está na lei que só se pode concorrer para Professor Auxiliar ao fim de cinco anos de prática. Não está na lei que esses cinco anos tenham que ser cumpridos em Portugal, mas aqui, em todo o país, a tradição é mesmo essa. Então para onde é que vão os jovens muito bem preparadps que acabaram de chegar do MIT a rebentar de qualificação, genica, e grandes ideias? Apanham logo com o famoso balde portugues de água gelada?

E calculo que aconteça o mesmo com as nova bolsas de Pós-Graduação ... Claro. Pela primeira vez o Ministro fez uma coisa muito boa, que eéfinanciar os anos reamente produtivos, quando os nossos mochinhos já voam por conta própria e estão tanto extremamente informados como dispostos a dormir no laboratório se for preciso. Portugal tem já hoje, e vai ter mais no futuro, uma carteira brilhante de gente desta, mas que posições é que tem para lhes dar? Estes acordos com as universidades americanas são para criar Mestres e Doutores , mas isso tinha que ser acompanhado por programas audaciosos de reforma das Universidades, senão eles não arranjam lá emprego, e perde-se toda uma nata de investigadores de alto nível. E estes são os únicos sítios onde, nos próximos anos, faz sentido empregar integrar jovens altamente qualificados. O resto são coisas precárias, a curto prazo, que vão só adiando o problema. Uma das razões porque eu me opus a este programa é porque ele, de facto, não nos resolve problemas. Na melhor das hipóteses, só os adia.

Como Reitor, o que é que gostaria muito de fazer que acha que não vai conseguir? Da minha experiência como Reitor, o que custa mais é a impossibildade prática que eu tenho de recrutar gente nova de qualidade. Estamos a perder uma geração que tínhamos a obrigação moral de não deixar perdida. Os que têm hoje 25 anos já vão apanhar uma fase de reforma, mas para os que estão agora sem saída uma oportunidade que aparece daqui a cinco ou dez anos pode já vir tarde. O nosso primeiro problema é criar emprego científico na Universidade, e já.